O cosmopolita de Moledo
O leitor deve supor que a minha memória já foi melhor. Com a idade vamos esquecendo afrontas e memórias da felicidade passageira. A primeira viagem a Lisboa, no entanto, permanece no conjunto das minhas recordações - nocturna, demorada, com uma luz amarelada no vagão-restaurante onde o velho doutor Homem, meu pai, me levou pela mão para tomar lugar à mesa. Lembro, também, uma extraordinária sucessão de paisagens que passa pela minha retina como uma provação para me recordar a idade e o próprio esquecimento (uma vez que não recordo os nomes a que correspondem essas imagens, o que não me angustia grandemente).
A minha sobrinha acha que eu devia escrever sobre as minhas viagens; ela está convencida de que sou um cosmopolita desde que lhe falei do encontro com um séquito de actrizes americanas no Copacabana Palace durante os anos de Juscelino Kubitscheck, naquele breve faiscar de civilização que tomou conta do Brasil durante os anos cinquenta. Mas encontrar jovens damas no hotel dos hotéis da época, em pleno Rio de Janeiro, era fácil de mais. O doutor Salazar, que se interessava bastante pela vida alheia, não gostava dos diplomatas que lhe falavam do Brasil, que ele supunha ser a terra do pecado, cheia de solicitações e de vícios. De certa maneira, o ditador tinha razão, mas a sua avaliação era diferente da minha, tendo em conta que o pecado raramente me fez voltar a cabeça na direcção do passado.
Seja como for, não sou e nunca fui um cosmopolita. Desconheço a grandiosidade e o brilho dos grandes lugares do mundo, e nunca trocaria a minha língua por outra - sou, pois, um velho minhoto que teve o seu tempo na época em que Portugal era uma enorme província cuja capital, durante o Verão, foi sempre Moledo. Ao longo dos anos, os meus irmãos foram abandonando esse hábito, certamente prejudicial para o reumatismo, de frequentar a vetusta praia de Moledo, e eu compreendo-os. Fazem-no por hábito e porque julgam que viajar é uma espécie de disciplina física que substitui o conhecimento das coisas. Por isso, regressam da Argentina, como de Paris ou da Tailândia com a impressão de arrastarem consigo um novo diploma, adquirido depois de uma provação de quinze dias dedicados a conhecerem o mundo e a relerem dele o essencial.
De qualquer modo, as praias de águas frias são um privilégio das classes abastadas, que se podem dar ao luxo de sofrer as agruras do mar do Minho; a generalidade das pessoas procura estações balneares mais amenas e onde existe aquilo a que dão o nome de turismo. Os velhos podem dar-se ao luxo de esperar que, nas manhãs de Moledo, o nevoeiro levante e o céu se ilumine; não têm pressa nem guardam uma finalidade. E, tirando os velhos, apenas os mais jovens, que desconhecem a importância de acordar cedo.
Desde há muitos anos que, por várias razões (a pequena utilidade da vida, por exemplo) deixei de "fazer serão". O velho doutor Homem, meu pai, apreciava os serões naquele mundo em que o jantar de família era servido, quase pontualmente, às sete e meia da tarde. Do jantar até à hora de deitar decorriam três horas destinadas à leitura dos jornais ingleses que chegavam ao velho escritório da baixa, à tarefa de organizar e reorganizar permanentemente a sua biblioteca (que herdei intacta e ordenada), excepto duas noites por semana - em que jogava cartas ou jantava fora com Dona Ester, minha mãe.
Ele tinha pena de não ter vivido em Oxford. Não porque gostasse de ter sido um académico, mas para poder recordar as noites em que teria folheado o Telegraph e bebido xerez. Os jornais ingleses substituíam esse desejo não cumprido. Impedido de discutir questões de política doméstica, tornou-se cosmopolita para poder comentar a herança de Disraeli ou de Churchill na vida dos conservadores britânicos. Era uma substituição, realmente, como todo o cosmopolitismo. A minha sobrinha julga que é uma finalidade em si mesma. Se assim fosse, a praia de Moledo já teria desaparecido, engolida pelo mar, inútil e desprezada. E continua ali. Sinto-me um cosmopolita feliz em Moledo.
in Revista Notícias Sábado – 13 Maio 2006
A minha sobrinha acha que eu devia escrever sobre as minhas viagens; ela está convencida de que sou um cosmopolita desde que lhe falei do encontro com um séquito de actrizes americanas no Copacabana Palace durante os anos de Juscelino Kubitscheck, naquele breve faiscar de civilização que tomou conta do Brasil durante os anos cinquenta. Mas encontrar jovens damas no hotel dos hotéis da época, em pleno Rio de Janeiro, era fácil de mais. O doutor Salazar, que se interessava bastante pela vida alheia, não gostava dos diplomatas que lhe falavam do Brasil, que ele supunha ser a terra do pecado, cheia de solicitações e de vícios. De certa maneira, o ditador tinha razão, mas a sua avaliação era diferente da minha, tendo em conta que o pecado raramente me fez voltar a cabeça na direcção do passado.
Seja como for, não sou e nunca fui um cosmopolita. Desconheço a grandiosidade e o brilho dos grandes lugares do mundo, e nunca trocaria a minha língua por outra - sou, pois, um velho minhoto que teve o seu tempo na época em que Portugal era uma enorme província cuja capital, durante o Verão, foi sempre Moledo. Ao longo dos anos, os meus irmãos foram abandonando esse hábito, certamente prejudicial para o reumatismo, de frequentar a vetusta praia de Moledo, e eu compreendo-os. Fazem-no por hábito e porque julgam que viajar é uma espécie de disciplina física que substitui o conhecimento das coisas. Por isso, regressam da Argentina, como de Paris ou da Tailândia com a impressão de arrastarem consigo um novo diploma, adquirido depois de uma provação de quinze dias dedicados a conhecerem o mundo e a relerem dele o essencial.
De qualquer modo, as praias de águas frias são um privilégio das classes abastadas, que se podem dar ao luxo de sofrer as agruras do mar do Minho; a generalidade das pessoas procura estações balneares mais amenas e onde existe aquilo a que dão o nome de turismo. Os velhos podem dar-se ao luxo de esperar que, nas manhãs de Moledo, o nevoeiro levante e o céu se ilumine; não têm pressa nem guardam uma finalidade. E, tirando os velhos, apenas os mais jovens, que desconhecem a importância de acordar cedo.
Desde há muitos anos que, por várias razões (a pequena utilidade da vida, por exemplo) deixei de "fazer serão". O velho doutor Homem, meu pai, apreciava os serões naquele mundo em que o jantar de família era servido, quase pontualmente, às sete e meia da tarde. Do jantar até à hora de deitar decorriam três horas destinadas à leitura dos jornais ingleses que chegavam ao velho escritório da baixa, à tarefa de organizar e reorganizar permanentemente a sua biblioteca (que herdei intacta e ordenada), excepto duas noites por semana - em que jogava cartas ou jantava fora com Dona Ester, minha mãe.
Ele tinha pena de não ter vivido em Oxford. Não porque gostasse de ter sido um académico, mas para poder recordar as noites em que teria folheado o Telegraph e bebido xerez. Os jornais ingleses substituíam esse desejo não cumprido. Impedido de discutir questões de política doméstica, tornou-se cosmopolita para poder comentar a herança de Disraeli ou de Churchill na vida dos conservadores britânicos. Era uma substituição, realmente, como todo o cosmopolitismo. A minha sobrinha julga que é uma finalidade em si mesma. Se assim fosse, a praia de Moledo já teria desaparecido, engolida pelo mar, inútil e desprezada. E continua ali. Sinto-me um cosmopolita feliz em Moledo.
in Revista Notícias Sábado – 13 Maio 2006
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