Nunca acreditámos que Portugal mudou
O
velho Doutor Homem, meu pai, não conheceu o Dr. Armindo Monteiro, mas pressinto
que comungavam da mesma visão em relação à posição de Portugal durante a II
Guerra. Foi mais feliz o advogado portuense do que o embaixador em Londres: o
segundo foi afastado, o primeiro seguiu o seu caminho, confirmando que o dr.
Salazar era um pontífice beirão a administrar um país pobre, enfadonho e
corrompido. Ele achava que o Dr. Salazar tratava o país como um filho de tenra
idade que necessita de amparo e protecção, razão porque a pátria definhava,
entregue aos cuidados do antigo salvador, que tanto administrava senhas de
racionamento durante a Guerra, como se julgava guardião dos restos mortais de
el-rei D. Sancho, o Pio, ou – num arroubo – declarava que um país esfomeado
(como era o nosso) estava disposto a morrer para salvar Nagar Aveli e Goa.
O
anti-salazarismo do velho Doutor Homem, meu pai, era elegante e fátuo, como se
precisasse do dr. Salazar para animar o seu sentido de humor, que era assassino
e cheio de crueldade — ele dizia que o professor de Coimbra calçava botins
comprados “na Saville Row de Santa Comba Dão”, o que serve para dar uma ideia
do seu dandismo incurável. Depois do desembarque na Normandia, ele alimentou a
esperança de que o mundo se interessasse por Portugal, o que seria um absurdo.
A vida continuou com poucas alterações visíveis, o que foi outro absurdo, e a família
continuou nos anos quarenta, como tinha feito antes e faria depois, a passar
férias em Ponte de Lima, rodeada de velharias, dos antepassados e da Tia
Benedita, a única de nós que acreditava que Portugal tinha sido poupado aos
bombardeamentos estrangeiros por causa das orações pelo ditador. “O mal”, dizia
a velha senhora, “é que não o entendem.”
O
velho Doutor Homem, meu pai, ria desta profissão de fé. Ele era um
estrangeirado que, com vinte e dois anos teve a graça de umas férias inglesas.
Essas “férias inglesas”, que ficaram famosas depois, foram a consequência de um
velho distúrbio familiar, segundo o qual em Portugal não se aprende grande
coisa. Bastava a um Homem cruzar a imaginária linha de fronteira que separava a
verdura de Valença da desolação de Tuy, ou atravessar as primeiras montanhas
das Astúrias (de comboio), a caminho de Paris, para se transformar num cidadão
do mundo. Anos mais tarde, o meu pai confidenciou-me que isso se devia à
teimosia dos Homem em aceitar que a Pátria tinha mudado consideravelmente, mais
do que podia a compreensão da velha família espalhada pelo Porto, por Ponte de
Lima e pelo arvoredo dos Arcos.
in Domingo - Correio da Manhã - 29 Abril 2012
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