O mês de Abril que não regressa
Houve um dia, creio que se tratava de uma tarde Abril, fria
como as deste ano, em que percebi que tinha envelhecido sem remissão. O velho
Doutor Homem, meu pai, acabara de regressar de um visita ao médico e anunciou
que “precisava de fazer exames”, eufemismo para explicar que sofria de um mal
crónico que haveria de o acompanhar até 1974. A doença do meu pai ajudou-o a
sobreviver; Dona Ester, minha mãe, morreu antes; o seu médico, companheiro do
bridge semanal, morreu antes. Ele lutou com o mal e enganou-o enquanto pôde –
mas eu envelheci nesse dia e percebi que tinha chegado a um confronto decisivo
com a minha idade.
Na família, por graça e por grande amor à sinceridade,
sempre fui tratado como um caso especial – eu, o mais velho dos cinco irmãos,
teria envelhecido demasiado cedo: vestia fato aos sábados, os meus sapatos
tiveram sempre atacador, o celibato era visto como a antecâmara de uma vocação
de bibliotecário discreto, mesmo a dedicação à árvore genealógica da família
evidenciava um envelhecimento prematuro. Aceitei este retrato por preguiça e
comodismo; para o desmentir eram necessárias explicações que eu não queria dar
e que, ao longo da minha vida, guardei como um triunfo sobre a tagarelice.
Paixões, devaneios de meia idade, viagens discretas, certas leituras, cartas
trocadas ou nunca respondidas – tudo isso pertence à memória de cada um e,
sobretudo, à sua radiografia mais íntima.
A doença do meu pai relembrou-me, cedo demais, os deveres
familiares e a iminência do fim. Agora, que é Abril, relembro o poeta – “Abril
é o mês mais cruel” – e relembro os livros desse tempo de iniciação ao
sofrimento. Houve um tempo, depois de ter chegado à idade em que o pudor se
misturava com a decência (para deixar de ser vergonha apenas), em que as
lágrimas eram apenas um sinal de tristeza, de melancolia e, até, de sofrimento.
Mas tanto o sofrimento como a tristeza passaram a ser um espectáculo oferecido
em público, para uma audiência de espectadores convertidos à sensibilidade do
choroso. Ora, as lágrimas são mais do que um sinal; elas são o fenómeno em si.
Durante anos, assisti, não sem alguma indignação, à exigência de que os homens
– seres graníticos ou, pelo menos, venais – chorassem com abundância para
provar a sua suposta humanidade. Minha mãe, Dona Ester, não concordava. Ela
achava que as lágrimas eram parágrafos num romance popular, destinado a
alimentar almas que não deixavam sombra. Entretanto, envelhece-se sem remissão.
E sem regresso.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Abril 2012
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