domingo, abril 15, 2012

Sobre todas as coisas, o liquidâmbar

O velho Doutor Homem, meu pai, prezava os jardins do Porto como uma espécie de reduto contra a ventania do tempo. Das janelas do seu escritório avistava, de um lado a torre cinzenta dos Clérigos e, do outro, a neblina da cidade. Os liquidâmbares ainda não faziam parte da sua paisagem, tirando as visitas ao cemitério britânico, onde duas gigantescas árvores da espécie tanto prodigalizavam sombra no Estio como, depois, recato e colorido outonal. De Ponte de Lima trouxera para sempre a folhagem das tílias e dos amieiros, que considerava uma árvore boa para decorar as margens dos rios, mais do que para ser observada com admiração – e, tirando os pinheiros das serras em redor do velho casarão miguelista, os seus conhecimentos botânicos nunca foram além do essencial.

As flores dos liquidâmbares sempre me pareceram inúteis durante a minha juventude. Sem a exuberância das japoneiras, a doçura pastel das magnólias, o perfume ou o colorido das suas primas, limitavam-se a ser uma promessa verdejante que garantia a propagação da espécie. Na casa de Moledo há três, mais ou menos limitados pela maresia corrente, e que contrastam com a folhagem perene em redor. O Outono dá-lhes vida, a Primavera anuncia o seu esplendor – são uma árvore cuja beleza começa no nome, exótico e próprio para embelezar um roteiro instrutivo sobre a floresta local.

Um dos meus irmãos anunciou-me que, por causa de um muro a ameaçar ruína, um deles terá de ser rasurado no pátio de Ponte de Lima, o mesmo de onde o velho Doutor Homem, meu pai, mandava que os seus netos arrancassem gladíolos às escondidas (a dez tostões por exemplar). Manifestei-me contra a ideia; um liquidâmbar está destinado a crescer e a ser admirado; os portugueses detestam as árvores porque estas ocupam espaço que poderia ser ocupado por cimento ou por edifícios de arquitectos muito cotados; uma árvore centenária é sempre um sinal que honra uma família conservadora. Nenhum dos meus argumentos convenceu o grémio familiar. A minha irmã mais nova murmurou, ainda, que as árvores se substituem umas às outras porque são todas muito parecidas.

O meu estatuto de ancião dá-me voto de qualidade, mas não sei por quanto tempo. Por mim arrasaria o muro para que o liquidâmbar pudesse emprestar a sua nobreza melancólica às gerações vindouras. Mas não sei. Tentei interessar os meus sobrinhos pela matéria, sugerindo mostrar-lhes o herbário da família, um álbum de recordações fora de moda. Disseram que sim. Não sabem distinguir um pinheiro de uma abóbora.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Abril 2012