domingo, abril 01, 2012

Elogio da paisagem e das nuvens, claro

A passagem mais enigmática de ‘A Cidade e as Serras’, de Eça de Queiroz, é, naturalmente, a que descreve a viagem de Jacinto e Zé Fernandes desde a estação junto do Douro até aos domínios do príncipe da Grã-Ventura em Tormes. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava-a uma das pérolas da nossa Língua; a minha sobrinha Maria Luísa, quando no zénite da sua pós-adolescência, achava-a terrivelmente maçadora – mas, mais tarde, apaixonou-se por esse trecho e via nele todo um programa literário. Não era. De facto, esses parágrafos, calcorreando as colinas sumptuosas da imaginação de Eça, mais do que da nossa geografia e botânica, desenhavam uma paisagem que hoje já não existe. Nessa altura, todos os arvoredos eram “luxuriantes”, e todas as planícies indecorosamente verdes. Com o tempo, a paisagem intocada da literatura encheu-se de devaneios arquitectónicos e de cargas de betão que transportaram o progresso para os lugarejos mais remotos do Soajo, do Larouco ou do Douro.

Isso só acontecia na literatura, em geral, porque os portugueses nunca foram muito ligados às suas paisagens. Que um comboio ou uma estrada atravesse os campos de uma província ou os pinhais de uma colina, é matéria do “progresso inevitável” e raramente lhes forneceu assunto de discussão, porque árvores “é o que mais há” e as paisagens “são boas para os poetas”. O próprio Eça, num repente de ironia, cita o poeta Alencar, de ‘Os Maias’, num soneto sintrense, que termina com o célebre verso “Ao lado o burro, pensativo, pasta...” O resto era, vá lá, paisagem, cerros povoados, córregos que atravessam as serras e pouco mais. Ou seja, inutilidade dispensável, tal como as ruínas que as décadas e os séculos nos legaram.

Isto está relacionado, naturalmente, com a tendência pouco contemplativa dos portugueses de hoje. Não há aldeia que não tenha uma construção opulenta a lembrar que a epopeia da arquitectura moderna e do “progresso cultural” também já ali chegou, indesmentível e inadiável – enquanto, ao lado, se acumulam ruínas e se enfeitam paisagens com despojos da vida moderna.

Ao chegar à idade em que as coisas são mais do que relativas e consideramos que a passagem do tempo tudo ilumina, aprecio cada vez mais a paisagem intocada, as nuvens que a protegem, e a capacidade de amar as ruínas do meu país. Um dia destes direi à presidente da Câmara de Caminha que estarei disposto a votar por ela, se me garantir que não ergue uma única obra pública. Por aqui se vê até onde vai a deliquescência de um conservador.

in Domingo - Correio da Manhã - 1 Abril 2012