domingo, maio 15, 2011

O retrato fiel de uma tragédia

Tive, durante muito tempo, um certo horror morigerado pelo senhor deputado de Miranda, Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda (na época decorávamos os nomes completos dos personagens e recitávamos – com despropositada pompa – as passagens mais estapafúrdias), herói de ‘A Queda dum Anjo’. Havia na família, nas estantes do casarão de Ponte de Lima, uma edição de 1891, muito requisitada durante os verões da minha adolescência, o que explica uma certa dedicação ao livro, à história que ele conta e à admiração que se votava a Camilo. O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que a paixão da família por “pantomineiros da política” se devia mais a Camilo do que ao nosso cepticismo, temperado com uma certa misantropia – ou seja, que ‘Eusébio Macário’ e ‘A Brasileira de Prazins’ fizeram mais pela nossa formação política do que os discursos de José Acúrcio das Neves em defesa do senhor Dom Miguel ou a doutrinação invisível da Tia Benedita, a matriarca miguelista da família. De certo modo, é verdade. No cume da Regeneração, que cicatrizava as feridas da guerra civil, e que relegava os Homem dessa época para a categoria das recordações do Antigo Regime, Camilo Castelo Branco era a única figura das letras que não era nem democrata, nem sofria de amnésia, nem escrevia ditirambos nas secretarias dos ministérios. Era, sobretudo, um homem do Minho, um espectro do velho Porto romântico que penara na cadeia e conhecera a parte da nossa História que tinha sido banida pela modernidade e pela má gramática – e que, longe de se dedicar a construir heróis que interpretassem a Carta e o constitucionalismo em rimas interpoladas, preferia patifes e pícaros que representassem o velho Portugal das províncias.

Nós, que somos filhos de Eça – sabíamos que o retrato verdadeiro, o retrato cru, o retrato fidelíssimo da nossa amargura vinha nas páginas de Camilo, nas implicações de Camilo, no velho romantismo de Camilo. E, sobretudo, no humor trágico e de comédia risível do bruxo de Seide, que escrevia os seus romances como uma cartografia da época – e muito contra a banalidade do seu tempo, à maneira de um Flaubert fora de contexto, temperado por muita gramática e ironia.

Nesse país do constitucionalismo e da Regeneração, o «homem comum» tomou o lugar dos velhos portugueses de exemplo, cuja cãs transportavam as leis e os costumes de antanho; Calisto prefere a condição de «homem comum», como chamava D. Agustina, na sua imensa sabedoria, aos políticos do nosso tempo. É trágico.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Maio 2011