Uma história de outros tempos
O velho Doutor Homem, meu pai, nunca me perguntou se eu tinha deixado o meu coração no Rio de Janeiro daqueles anos, mas suspeitou que essa temporada carioca tinha mudado um pouco a minha vida. O saudoso Hotel Glória guardou por uns tempos a inútil gabardina que deixei esquecida sobre uma cadeira no quarto que ocupei durante três meses sem a ter usado uma única vez; depois, deve ter depreendido que o seu dono nunca voltaria para buscá-la. Nunca voltei, nem poderia. À minha sobrinha Maria Luísa, que acha quase todas as histórias de amor dignas de romance, tive de explicar o que era o mundo da época – a acrescentar ao complexo de deveres e temores que era natural apoderar-se de um português fora de portas. Sim, houve algum temor a mais; foi ele a vencer o coração, que ficou – como, sábio e discreto, suspeitou o velho Doutor Homem, meu pai – no Rio de Janeiro, algures na Copacabana enevoada da última semana daquele trimestre. A família tinha-me enviado ao Rio sob o pretexto de contactar os nossos correspondentes na então capital brasileira, mas a verdade é que a viagem fora prescrita por Dona Ester, minha mãe, como um medicamento apropriado para cauterizar feridas recentes, um noivado desfeito e um temperamento transtornado pela melancolia da passagem à idade adulta. O escritório dos advogados que tratavam dos nossos negócios do outro lado do Atlântico era uma fortaleza dos anos trinta que sobrevivia prosperamente nos anos cinquenta, ocupado por colarinhos e fatos de corte francês. Foi nesse cenário que a conheci, como uma luz passageira que estava destinada a ser – como acabou por ser – definitiva. Durante semanas aprendi com ela (uma jovem nunca deixou de ser jovem nas minhas recordações) que, para lá dos deveres e dos temores, havia uma raríssima beleza na fragilidade da vida. Nessas semanas em que vivi, emprestada, a leveza dos crepúsculos cariocas, despedi-me várias vezes do meu destino; de cada vez que, à noite, me apresentava diante da janela do meu quarto, naquele hotel que – como eu –nascera velho e coberto por um manto de solenidade, encarregava-me de afastar a tentação de seguir o meu coração. Descobri tarde demais que não se tratava de uma tentação mas sim de outra vida, e que eu poderia escolhê-la se fosse outro ou se estivesse na disposição de correr todos os riscos da minha idade. Foi, provavelmente, o maior pecado da minha vida. Regressei a Portugal, aos meus deveres e temores. Soube muito depois que Dona Ester, minha mãe, nunca me perdoou. in Domingo - Correio da Manhã - 3 Abril 2011
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