O sentimento de culpa na Primavera de Moledo
A minha sobrinha Maria Luísa permanece naquele curioso limbo em que “as condições gerais da existência” lhe permitem viver do seu negócio (ela cuida da vida dos ricos, em Braga, decorando-lhes as casas) e, ao mesmo tempo, alimentar um discreto sentimento de culpa em relação aos benefícios que dele colhe. Depois de a escutar relembrei-lhe que “o sentimento de culpa” é um extraordinário elemento da nossa civilização. Tal como a procura do bem-estar, a liberdade, a arte, a busca justiça e a propagação da família – a culpa decora, com subtileza, esse edifício que tratamos com negligência. Mais do que a religião (tanto o velho Doutor Homem, meu pai, como Dona Ester, minha mãe, eram ligeiramente “liberais” em relação ao tema, sob o argumento de que se tratava de assunto da vida privada) e as suas ramificações, a culpa é um bem inestimável que frequentemente salva o género humano da catástrofe. Sem culpa, ou seja, sem limites à nossa condição (que é má), é provável que nenhum outro valor sobejasse na contabilidade das coisas deste mundo.
A Tia Benedita, que não se achava deste mundo, pensava que tudo estava ligado à religião. Aquele universo de penitências, novenas, ciclos de oração e celebrações rituais era um amparo que não dispensava. Mas ela não conheceu o suplício do pecado fora de portas; o seu mundo terminara cem anos antes, e não pretendia viver neste. Por isso, os dogmas eram dogmas e considerava a dúvida como a antecâmara da perdição. Ai de nós, os modernos, que conheceram o ié-ié, a minissaia, a literatura francesa, o Dr. Freud e o inferno da descoberta das hormonas. Ao contrário da Tia Benedita (que considerava a imoralidade, o bolchevismo, a maçonaria, o adultério e o enriquecimento exagerado como meras consequências do pecado original), nós acreditamos na história, na vida em sociedade (com as suas desordens naturais) e na penicilina.
Maria Luísa declara que “sentimento de culpa” é sinónimo de “hipocrisia”. Não vejo um mal exagerado em nenhuma das coisas. Se a culpa nos obriga a procurar uma vida cordial, a “hipocrisia” obriga-nos a ter maneiras e a disfarçar o incómodo de nos darmos com os outros – e a não ter de viver nas grutas da Serra d’Arga, entre pinhais e penedos. Ela acha isto uma enormidade. Compreendo. A esquerdista da família tem, como toda a gente, a ambição de ter razão e, ao mesmo tempo, o desejo de não ser molestada pelos seus próprios valores. Infelizmente, o fermento da vida é uma contradição que nem a Primavera de Moledo dissolve.
in Domingo - Correio da Manhã - 8 Maio 2011
A Tia Benedita, que não se achava deste mundo, pensava que tudo estava ligado à religião. Aquele universo de penitências, novenas, ciclos de oração e celebrações rituais era um amparo que não dispensava. Mas ela não conheceu o suplício do pecado fora de portas; o seu mundo terminara cem anos antes, e não pretendia viver neste. Por isso, os dogmas eram dogmas e considerava a dúvida como a antecâmara da perdição. Ai de nós, os modernos, que conheceram o ié-ié, a minissaia, a literatura francesa, o Dr. Freud e o inferno da descoberta das hormonas. Ao contrário da Tia Benedita (que considerava a imoralidade, o bolchevismo, a maçonaria, o adultério e o enriquecimento exagerado como meras consequências do pecado original), nós acreditamos na história, na vida em sociedade (com as suas desordens naturais) e na penicilina.
Maria Luísa declara que “sentimento de culpa” é sinónimo de “hipocrisia”. Não vejo um mal exagerado em nenhuma das coisas. Se a culpa nos obriga a procurar uma vida cordial, a “hipocrisia” obriga-nos a ter maneiras e a disfarçar o incómodo de nos darmos com os outros – e a não ter de viver nas grutas da Serra d’Arga, entre pinhais e penedos. Ela acha isto uma enormidade. Compreendo. A esquerdista da família tem, como toda a gente, a ambição de ter razão e, ao mesmo tempo, o desejo de não ser molestada pelos seus próprios valores. Infelizmente, o fermento da vida é uma contradição que nem a Primavera de Moledo dissolve.
in Domingo - Correio da Manhã - 8 Maio 2011
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