Da vaidade do autor às virtudes do iodo
A minha despudorada vaidade ficou transtornada com um novo livro (“Um Promontório em Moledo”, que o Dr. Boavida publicou na Bertrand) em que se recolhem as crónicas deste minhoto quase contemporâneo do Titanic. Hoje em dia os livros são uma velharia, próprios de livrarias antigas e todas as livrarias são, à sua maneira, as mais antigas livrarias do mundo.
Na verdade, eu não sou um autor. Caibo apenas na categoria dos acidentes geodésicos. O centro do meu mundo está deslocado em relação aos ensinamentos da geografia, da mesma forma que o forte da Ínsua, em Moledo, só pode ser considerado o centro do mundo pelas antiquíssimas sereias galegas, passageiras frequentes das ondas que varrem Santa Tecla, a Foz do Minho e os areais das praias mais antidemocráticas do meu país. Peço desculpa aos leitores por esta invocação romântica, pouco consentânea com a tradição de crueldade dos Homem, mas as sereias, tal como o iodo e as neblinas matinais (uma expressão copiada do Dr. Anthímio de Azevedo), fazem parte da gramática literária de Moledo. Ora, sem Moledo eu não teria assunto para escrever, da mesma forma que, sem a distância de Moledo em relação à pátria, eu não teria o distanciamento que ajuda a manter uma certa ordem nas coisas. Essa “ordem nas coisas” não é propriamente uma fonte de disciplina e de perfeição, mas, antes, a capacidade de aceitar os nossos defeitos e de viver com eles sem exagerar no conúbio. Ou seja, temos de viver com ilusões e de mantê-las como se fossem essenciais à manutenção da espécie.
Veja-se o iodo. Dona Ester, minha mãe – que foi a fonte do nosso anti-romantismo –atribuía ao iodo virtudes certamente exageradas, juntamente com o bronzeado do Minho, que ela equiparava à qualidade de medicamento natural (os seus filhos cresceram saudáveis e relativamente egoístas), bom para prevenir as gripes, para afugentar a palidez e para diluir os males de amor. Recordo-me da sua jovialidade ao receber, em casa, os primeiros aromas de mimosa e o perfume dos primeiros bronzeadores vindos da praia. Abril pode, como certificava o poeta, ser o mês mais cruel – mas é também o que mais esperanças de longevidade transporta para os velhos. A minha sobrinha Maria Luísa diz que, normalmente, é em Abril que começo a perorar sobre o iodo, num crescendo que termina em Agosto, quando a família transforma Moledo num entorpecente miraculoso. O iodo, como o leitor sabe, não existe – é uma sensação. A mim, mostra-me o caminho para o verdadeiro marco geodésico da minha vida.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 de Maio 2011
Na verdade, eu não sou um autor. Caibo apenas na categoria dos acidentes geodésicos. O centro do meu mundo está deslocado em relação aos ensinamentos da geografia, da mesma forma que o forte da Ínsua, em Moledo, só pode ser considerado o centro do mundo pelas antiquíssimas sereias galegas, passageiras frequentes das ondas que varrem Santa Tecla, a Foz do Minho e os areais das praias mais antidemocráticas do meu país. Peço desculpa aos leitores por esta invocação romântica, pouco consentânea com a tradição de crueldade dos Homem, mas as sereias, tal como o iodo e as neblinas matinais (uma expressão copiada do Dr. Anthímio de Azevedo), fazem parte da gramática literária de Moledo. Ora, sem Moledo eu não teria assunto para escrever, da mesma forma que, sem a distância de Moledo em relação à pátria, eu não teria o distanciamento que ajuda a manter uma certa ordem nas coisas. Essa “ordem nas coisas” não é propriamente uma fonte de disciplina e de perfeição, mas, antes, a capacidade de aceitar os nossos defeitos e de viver com eles sem exagerar no conúbio. Ou seja, temos de viver com ilusões e de mantê-las como se fossem essenciais à manutenção da espécie.
Veja-se o iodo. Dona Ester, minha mãe – que foi a fonte do nosso anti-romantismo –atribuía ao iodo virtudes certamente exageradas, juntamente com o bronzeado do Minho, que ela equiparava à qualidade de medicamento natural (os seus filhos cresceram saudáveis e relativamente egoístas), bom para prevenir as gripes, para afugentar a palidez e para diluir os males de amor. Recordo-me da sua jovialidade ao receber, em casa, os primeiros aromas de mimosa e o perfume dos primeiros bronzeadores vindos da praia. Abril pode, como certificava o poeta, ser o mês mais cruel – mas é também o que mais esperanças de longevidade transporta para os velhos. A minha sobrinha Maria Luísa diz que, normalmente, é em Abril que começo a perorar sobre o iodo, num crescendo que termina em Agosto, quando a família transforma Moledo num entorpecente miraculoso. O iodo, como o leitor sabe, não existe – é uma sensação. A mim, mostra-me o caminho para o verdadeiro marco geodésico da minha vida.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 de Maio 2011
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