Conversa de Abril ou a paciência
A destreza social, tal como a paciência, diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. Falo de literatura apenas por falar — na verdade, pouco se comenta de literatura à mesa nestes dias em que “a política” tomou conta das desventuras da pátria. A mim, mencionam-me vagamente uns nomes de novos autores, mas o defeito da ignorância é um dos meus pecados. Arrependo-me com seriedade, ciente de que o mundo não começou ontem nem há-de acabar amanhã, e escuto; desconheço as desventuras do romance contemporâneo, a minha preguiça vai sendo um Adamastor que engole todo e qualquer esforço. A minha sobrinha, que depenica nas minhas estantes à procura de literatura para as noites bracarenses, é exigente na matéria, o que me comove com alguma largueza. Dou-me a esse luxo com ela, embora dispense saber como se preenchem de livros as noites de Braga — o que me não contam, eu não sei; o que não sei, não me assusta; o que não me assusta, tem uma vaga existência para lá de Moledo e das suas tardes amenas de Abril, fustigadas pela chuva, temperadas pelo sol ligeiro que chega das serras.
Entretanto, o tempo foi passando. São coisas que não se alteram. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas.
Quando ainda não se tinha inventado o iodo para justificar temporadas de praia, o velho doutor Homem, meu pai, retirava-se para a velha casa de Ponte de Lima, arrastando consigo a família e uma considerável quantidade de malas transportadas do Porto em duas viagens. Mas ele era um “moderno”, reconheço hoje. Num mundo que ainda não tinha descoberto os telemóveis ou a Internet, mas que ouvia rádio e se preparava para, um dia, ver televisão, as temporadas de Ponte de Lima significavam o que passaram depois a ser os retiros espirituais ou os ‘spas’ da actualidade. Não éramos melhores do que os meus sobrinhos. Reconheço, claro, que a espécie registou, desde então, mudanças substanciais: ficou mais barulhenta, está mais despenteada e sofre mais de asma, por exemplo. No resto, a destreza social – tal como a paciência – continua a diminuir. A felicidade continua a ser uma espécie de arremedo e de subproduto, o resultado da dificuldade em encarar o tempo e as suas vicissitudes como aquilo que elas são: um puro feitio, e não um defeito. Conversa para Abril, diz-me a minha sobrinha.
in Domingo - Correio da Manhã - 24 Abril 2011
Entretanto, o tempo foi passando. São coisas que não se alteram. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas.
Quando ainda não se tinha inventado o iodo para justificar temporadas de praia, o velho doutor Homem, meu pai, retirava-se para a velha casa de Ponte de Lima, arrastando consigo a família e uma considerável quantidade de malas transportadas do Porto em duas viagens. Mas ele era um “moderno”, reconheço hoje. Num mundo que ainda não tinha descoberto os telemóveis ou a Internet, mas que ouvia rádio e se preparava para, um dia, ver televisão, as temporadas de Ponte de Lima significavam o que passaram depois a ser os retiros espirituais ou os ‘spas’ da actualidade. Não éramos melhores do que os meus sobrinhos. Reconheço, claro, que a espécie registou, desde então, mudanças substanciais: ficou mais barulhenta, está mais despenteada e sofre mais de asma, por exemplo. No resto, a destreza social – tal como a paciência – continua a diminuir. A felicidade continua a ser uma espécie de arremedo e de subproduto, o resultado da dificuldade em encarar o tempo e as suas vicissitudes como aquilo que elas são: um puro feitio, e não um defeito. Conversa para Abril, diz-me a minha sobrinha.
in Domingo - Correio da Manhã - 24 Abril 2011
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