domingo, abril 10, 2011

A União Ibérica e os 'carabineros' de bigode

Para Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, a Espanha começa em Vila Nova de Cerveira e termina na margem de lá do Minho ou, quando muito, em Camposancos, quando a montanha de Santa Tecla deixa de ser ameaçadora. Tudo o resto é o que ela entende. No ano passado, quando, em pleno Verão, Maria Luísa veio de Braga decidida a levar-nos em peregrinação a Vigo, por altura das festas, anunciou do jardim “que íamos a Espanha”. Dona Elaine aceitou a oferta, mas relembrou que Vigo era tanto Espanha como Moledo uma aldeia marroquina – que Vigo era Vigo. Esta clareza meridiana surpreenderá o leitor mais distraído mas, de facto, “ir a Espanha” é uma emoção apenas enquanto não se entra “no território”. Mal se atravessa a ponte de Cerveira, Dona Elaine acredita que o lado de lá não passa de uma reencarnação do Minho, com os mesmos granitos e talvez menos lixo na rua.

Ela não faz parte, portanto, dos portugueses que pretendem uma “união ibérica”; o seu nacionalismo minhoto leva-a a ver vinhas de enforcado nos desfiladeiros madeirenses do Curral das Freiras ou de Porto Moniz, onde foi por duas vezes de excursão e, se chegasse a El Ferrol, aquela esquadria aprumada e matemática das suas ruas não a surpreenderia porque acha Viana o zénite da arrumação. Ao contrário de Dona Elaine, que despreza com uma ligeira sobranceria (que nunca toca os limites da antipatia) tudo o que fica para lá da sua geografia e do seu sotaque, os portugueses apreciam muito a “união ibérica” e quase metade deles gostaria de ser uma “autonomia espanhola”, segundo dizem os jornais. Este desejo é antigo, tanto como o seu contrário, e emerge periodicamente ou da nossa vastíssima capacidade de desistir ou da incapacidade de observar as coisas de longe.

O velho Doutor Homem, meu pai, era um amante das coisas de Espanha e, ao contrário de Dona Elaine, admitia a existência real do país vizinho. Visitava-a amiúde, ou – antes da Guerra – para nos levar em passeio para lá da Península, ou, mais tarde, na sua idade madura, para mudar episodicamente de culinária e de cheiro de tabaco. Havia, nessa altura, “um cheiro a Espanha”, um misto de águas de colónia populares e de fumo de tabaco negro, de comida generosa e de gasolina mais barata. A “união ibérica” é uma fantasia pueril dos inimigos de Espanha; ao contrário dos “iberistas”, costumo insistir em que nos convém muito a sua existência separada da nossa e, se possível, com fronteiras vigiadas pela Guarda Fiscal e por “carabineros” de bigode. É a Espanha que garante a nossa existência real. Integrados em Espanha, perderíamos os nossos defeitos.

in Domingo - Correio da Manhã - 10 Abril 2011