Estamos melhor hoje ou ontem?
Periodicamente, a Tia Benedita lamentava-se sobre o andamento das coisas do mundo e, como qualquer contabilista de Viana, fazia os seus balancetes e resumos de exploração. A linguagem cabe no deve e haver de um comerciante que cuida da sua "escrita" mas talvez – penso nisso a esta distância – fosse absurda no caso da matriarca dos Homem.
Para a Tia Benedita, entusiasmada pelos ardores do Verão e pela presença da família, numerosa, barulhenta e descuidada, o passado tinha uma inultrapassável vantagem sobre o presente: já não lhe dava cuidados. Matreira e esfíngica, como uma mulher do Minho, ela sabia que nos ludibriava com as suas lamentações de um Job feminino e austero; de entre o auditório, três ou quatro (entre eles, o velho Doutor Homem, meu pai) sorriam ao discurso sobre o estado do mundo. Ela tinha a certeza de que o mundo não seria diferente; a assembleia, entretida e cabisbaixa com as migalhas do bolo de mármore, pensava que um pouco de melancolia não ficava mal naquela cena familiar.
A verdade é que o tempo sucede rapidamente ao tempo que passa. Mal se dá conta. A sua velocidade cansa, mais do que distrai. Para a Tia Benedita, como para Espinosa (que ela identificava como um maçon holandês) ou para o próprio Job, o lamento era mais uma figura de estilo. Estamos melhor hoje ou ontem? Os vagos miguelistas da família, que de tempos a tempos abriam os armários nos Arcos, em Ponta da Barca, nas margens de Valença, no casarão de Ponte de Lima, sabiam a resposta: estariam melhor ontem. Havia uma ordem entre as ruínas, a idade ainda não fora maculada pela angústia das doenças e pela dor das despedidas, o mundo tinha fronteiras.
Os portugueses estariam melhor antes ou depois do 25 de Abril?, perguntavam os sociólogos na semana passada. A minha sobrinha Maria Luísa acha a pergunta estapafúrdia, tão útil como saber a cor da casaca do Menino Jesus da Cartolinha (que é verde). E queixa-se: que "as pessoas são ingratas". Ela supõe que o mundo tem uma explicação positiva, tal como a Tia Benedita, que preferia o passado pela simples razão de que já não lhe dava preocupações.
Maria Luísa fica melancólica nestas ocasiões, como se o mundo se tivesse portado mal e desobedecido a um imperativo moral. Recolhe-se e fica ciumenta, e creio que sonha com a felicidade. Tentei explicar-lhe a forma como o Tia Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, encarava as coisas – o grande segredo é confiar no tempo. Há-de haver um tempo. Mesmo que seja um tempo passado.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Janeiro 2011
Para a Tia Benedita, entusiasmada pelos ardores do Verão e pela presença da família, numerosa, barulhenta e descuidada, o passado tinha uma inultrapassável vantagem sobre o presente: já não lhe dava cuidados. Matreira e esfíngica, como uma mulher do Minho, ela sabia que nos ludibriava com as suas lamentações de um Job feminino e austero; de entre o auditório, três ou quatro (entre eles, o velho Doutor Homem, meu pai) sorriam ao discurso sobre o estado do mundo. Ela tinha a certeza de que o mundo não seria diferente; a assembleia, entretida e cabisbaixa com as migalhas do bolo de mármore, pensava que um pouco de melancolia não ficava mal naquela cena familiar.
A verdade é que o tempo sucede rapidamente ao tempo que passa. Mal se dá conta. A sua velocidade cansa, mais do que distrai. Para a Tia Benedita, como para Espinosa (que ela identificava como um maçon holandês) ou para o próprio Job, o lamento era mais uma figura de estilo. Estamos melhor hoje ou ontem? Os vagos miguelistas da família, que de tempos a tempos abriam os armários nos Arcos, em Ponta da Barca, nas margens de Valença, no casarão de Ponte de Lima, sabiam a resposta: estariam melhor ontem. Havia uma ordem entre as ruínas, a idade ainda não fora maculada pela angústia das doenças e pela dor das despedidas, o mundo tinha fronteiras.
Os portugueses estariam melhor antes ou depois do 25 de Abril?, perguntavam os sociólogos na semana passada. A minha sobrinha Maria Luísa acha a pergunta estapafúrdia, tão útil como saber a cor da casaca do Menino Jesus da Cartolinha (que é verde). E queixa-se: que "as pessoas são ingratas". Ela supõe que o mundo tem uma explicação positiva, tal como a Tia Benedita, que preferia o passado pela simples razão de que já não lhe dava preocupações.
Maria Luísa fica melancólica nestas ocasiões, como se o mundo se tivesse portado mal e desobedecido a um imperativo moral. Recolhe-se e fica ciumenta, e creio que sonha com a felicidade. Tentei explicar-lhe a forma como o Tia Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, encarava as coisas – o grande segredo é confiar no tempo. Há-de haver um tempo. Mesmo que seja um tempo passado.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Janeiro 2011
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