domingo, janeiro 16, 2011

Um mundo em que não há limites

O velho doutor Homem, meu pai, temia ser confidente de pessoas que tivessem sofrido para além de certo limite (ele sabia que o género humano, na iminência de pisar esse risco, sente orgulho na dor que exibe) – com o argumento de que não era possível garantir que tamanha dose de sofrimento fosse verdadeira, sobretudo num mundo que tem gosto em maravilhar-se com o riso dos alarves. Penso, hoje, que ele teve sorte em não ver televisão. Ao contrário do que pensam certas pessoas bem-educadas, mas desajustadas em relação ao que se passa no mundo, a televisão não pode ser de outra maneira. O riso dos alarves conquistou o mundo, espalhou-se por todos os cantos como um gigantesco aparelho de televisão – e fala de prazer, como uma exigência que tem ares de figurar nas certidões de nascimento ou garantida como o direito de voto.

Lembro-me, por isso, da velha e manhosa sabedoria dos Homem, quando calha estarem entretidos em comentários sobre a vida alheia (uma distracção só permitida paredes dentro e no recato da sala de jantar ou na varanda do velho casarão de Ponte de Lima), e da severa advertência patriarcal diante de juízos sobre adultérios, infidelidades, questões amorosas e outras falhas da intimidade: "Disso não se fala, é com cada um." A ideia é generosa, mas também defensiva.

Neste como em outros assuntos é bom observar que a destreza social diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. A exibição da dor e das chagas pessoais, o interesse doentio pela miséria alheia, a felicidade diante das sombras – não é preciso grande "destreza social" para compreender que as regras mudaram muito e que a televisão multiplica por várias parcelas os defeitos de carácter do cidadão comum. Mata-se com bastante facilidade, é-se corrompido com desvelo e sentido da concupiscência, mente-se e desmente-se sem remorso, sentimento de culpa ou apenas vergonha.

O caso da morte do "cronista social" em Nova Iorque é um desses sintomas; não pelo crime em si mesmo, porque o horror e a violência se repetem como uma desgraça que periodicamente vem relembrar a nossa natureza. Mas pelo que se comenta a propósito e pelo que vamos sabendo acerca da desmoralização do mundo. Para uns, o mundo falha redondamente; para outros, o Inverno será relembrado por mais isto; para outros, o movimento dos planetas continua a provar que não há limites. E é isto.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Janeiro 2011