Breve elegia para o mês de Janeiro
Entretenho-me, por vezes, a ver fotografias de Moledo nos anos trinta, quarenta e cinquenta (os anos sessenta constituem uma inexplicável quebra na minha reserva de nostalgia) – quando eu tinha a idade de apreciar Moledo por aquilo que Moledo era: um cenário de filme italiano ou francês, romântico, a preto e branco, com os velhos automóveis estacionados diante da praia. Um deles seria o de minha mãe, Dona Ester, que teria acabado de lançar os seus filhos no areal, aguardando a finíssima neblina do entardecer, tépida e rescendendo a aromas saudáveis, ao sal empurrado pelo vento, aos mistérios do iodo.
Quando penso nesses anos estabeleço um contraste, não com a minha idade de hoje, pouco apresentável, mas com a que marcou o início da velhice; havia, na época, problemas de hipertensão que se curavam com o cheiro da resina dos pinhais à volta das dunas, desequilíbrios respiratórios que se diluíam com o magnífico solário que o Verão dispunha entre as barracas da praia, depressões desconhecidas que não chegavam a ver a luz do dia devido ao uso da água fria que atravessa os bancos de areia e os rochedos da Ínsua. Tratava-se de uma medicina irregular e estapafúrdia, radicalmente homeopática, que não transigia com os aparelhos que hoje medem a tensão arterial, com as pílulas para desconchavos renais ou para males de fígado, ai de nós.
Antes de considerar – porque há factos indesmentíveis na nossa biografia médica – que a minha vida estava em risco permanente, a partir dos setenta, eu achava que era a beleza natural de Moledo que me impedia de morrer. O velho Doutor Homem, meu pai, que era um ser urbano e cosmopolita – ainda que solitário – escapava da morte refugiando-se em Ponte de Lima, onde boa parte dos seus ancestrais tinham sido enterrados, entre ciprestes frondosos e canteiros coloridos; no meu caso, olho – em busca de oxigénio – os pinhais e um resto de arvoredo minhoto, tal como Dona Ester, minha mãe, nos despejava nas praias do Minho na esperança de acumularmos saúde para os dias futuros e os tempos aziagos.
A partir de certa altura, a vida é um risco inacessível, uma espécie de passeio na falésia. Vigiamos indicadores tão vagos como a espuma das ondas, temos certezas tão inóspitas como a meteorologia de Inverno. Um pouco de tranquilidade assenta no calendário como uma promessa de paz. Janeiro, por isso, é um mês de pousio e de elegância. Uma vaga paragem no tempo, a partir da qual não há previsões nem dia seguinte.
in Domingo - Correio da Manhã - 9 Janeiro 2011
Quando penso nesses anos estabeleço um contraste, não com a minha idade de hoje, pouco apresentável, mas com a que marcou o início da velhice; havia, na época, problemas de hipertensão que se curavam com o cheiro da resina dos pinhais à volta das dunas, desequilíbrios respiratórios que se diluíam com o magnífico solário que o Verão dispunha entre as barracas da praia, depressões desconhecidas que não chegavam a ver a luz do dia devido ao uso da água fria que atravessa os bancos de areia e os rochedos da Ínsua. Tratava-se de uma medicina irregular e estapafúrdia, radicalmente homeopática, que não transigia com os aparelhos que hoje medem a tensão arterial, com as pílulas para desconchavos renais ou para males de fígado, ai de nós.
Antes de considerar – porque há factos indesmentíveis na nossa biografia médica – que a minha vida estava em risco permanente, a partir dos setenta, eu achava que era a beleza natural de Moledo que me impedia de morrer. O velho Doutor Homem, meu pai, que era um ser urbano e cosmopolita – ainda que solitário – escapava da morte refugiando-se em Ponte de Lima, onde boa parte dos seus ancestrais tinham sido enterrados, entre ciprestes frondosos e canteiros coloridos; no meu caso, olho – em busca de oxigénio – os pinhais e um resto de arvoredo minhoto, tal como Dona Ester, minha mãe, nos despejava nas praias do Minho na esperança de acumularmos saúde para os dias futuros e os tempos aziagos.
A partir de certa altura, a vida é um risco inacessível, uma espécie de passeio na falésia. Vigiamos indicadores tão vagos como a espuma das ondas, temos certezas tão inóspitas como a meteorologia de Inverno. Um pouco de tranquilidade assenta no calendário como uma promessa de paz. Janeiro, por isso, é um mês de pousio e de elegância. Uma vaga paragem no tempo, a partir da qual não há previsões nem dia seguinte.
in Domingo - Correio da Manhã - 9 Janeiro 2011
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