Elogio das coisas que eram o que foram
Por que razão me interessam os livros velhos, as ruínas de Venade, as montanhas que oscilam sobre Moledo? Por nada. Habituei-me a eles. Tal como os livros velhos e os autores clássicos, as paisagens emudecem-me ao crepúsculo e preparam-me para o dia seguinte. Os portugueses não pensam assim: têm uma repugnância democrática e perliquiteira pelo “velho” e pelo “antigo” como se o tempo transportasse consigo o vírus que alimenta todas as maldições. Se um ministro desses, que agora aparecem na televisão, anunciasse uma estrada que arrasasse pinhais, maciços de granito coberto de musgo, muros cobertos de hera, prados de mimosas adocicadas, a multidão pensaria – antes de mais – no “progresso”.
Outro dia, no ‘Daily Telegraph’ (um hábito que o velho Doutor Homem, meu pai, alimentou e que ainda se mantém aos Sábados no eremitério de Moledo), li que as populações de um ‘county’ não estavam na disposição de ver passar um novo comboio “a alta velocidade” no meio dos prados onde nada crescia a não ser a vegetação que lembrava a paisagem do ‘Monte dos Vendavais’. A casmurrice explicava-se apenas por isso: porque a paisagem lhes pertencia, e não aos engenheiros que iriam fabricar um comboio que iria encurtar a distância de 300 quilómetros em vinte minutos. Vinte minutos, digamos, é o tempo que demoram apenas vinte minutos: um naufrágio em dia de tempestade, uma vaga de chuva que vem e passa – e a paisagem demora anos a formar-se. Um livro demora anos e anos a envelhecer e a provar que resistiu a décadas de poeira e crises do gosto. As ruínas entre os carvalhos de Venade ou os recôncavos onde poisam as neblinas de Caminha são o resultado de séculos de espera. O próprio crepúsculo diante da beleza frugal e sombria de Santa Tecla, atravessado por tanta boa e má poesia regional (segundo me disseram), é obra de um tempo que não cessa de comover-me. Diante disto, os portugueses falariam do “progresso”, como de uma inevitabilidade carregada pelo desinteresse.
Talvez esteja velho não apenas por isso resumir os cuidados do meu médico de Viana; há também um mundo que já não entende a necessidade de coisas velhas, antigas, coroadas pelas paisagens e pelas palavras que explicavam a ordem das coisas. A minha sobrinha Maria Luísa diz que eu tenho razão no que digo, mas que são muitos maus hábitos a sobreporem-se uns aos outros, formando uma barreira incómoda, que torna irreconhecível a face da terra. Pode ser. O tempo passa sobre homens e mulheres que eram como Ulisses e Penélope. E que repetem a sua existência.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Janeiro 2011
Outro dia, no ‘Daily Telegraph’ (um hábito que o velho Doutor Homem, meu pai, alimentou e que ainda se mantém aos Sábados no eremitério de Moledo), li que as populações de um ‘county’ não estavam na disposição de ver passar um novo comboio “a alta velocidade” no meio dos prados onde nada crescia a não ser a vegetação que lembrava a paisagem do ‘Monte dos Vendavais’. A casmurrice explicava-se apenas por isso: porque a paisagem lhes pertencia, e não aos engenheiros que iriam fabricar um comboio que iria encurtar a distância de 300 quilómetros em vinte minutos. Vinte minutos, digamos, é o tempo que demoram apenas vinte minutos: um naufrágio em dia de tempestade, uma vaga de chuva que vem e passa – e a paisagem demora anos a formar-se. Um livro demora anos e anos a envelhecer e a provar que resistiu a décadas de poeira e crises do gosto. As ruínas entre os carvalhos de Venade ou os recôncavos onde poisam as neblinas de Caminha são o resultado de séculos de espera. O próprio crepúsculo diante da beleza frugal e sombria de Santa Tecla, atravessado por tanta boa e má poesia regional (segundo me disseram), é obra de um tempo que não cessa de comover-me. Diante disto, os portugueses falariam do “progresso”, como de uma inevitabilidade carregada pelo desinteresse.
Talvez esteja velho não apenas por isso resumir os cuidados do meu médico de Viana; há também um mundo que já não entende a necessidade de coisas velhas, antigas, coroadas pelas paisagens e pelas palavras que explicavam a ordem das coisas. A minha sobrinha Maria Luísa diz que eu tenho razão no que digo, mas que são muitos maus hábitos a sobreporem-se uns aos outros, formando uma barreira incómoda, que torna irreconhecível a face da terra. Pode ser. O tempo passa sobre homens e mulheres que eram como Ulisses e Penélope. E que repetem a sua existência.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Janeiro 2011
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