A crise, duradoura e cruel como sempre
Diz-se que o meu avô, administrador de quintas no Douro, regressou nesse ano mais circunspecto da sua viagem a Barca d’Alva. Estávamos antes do regicídio. O seu poeta, Guerra Junqueiro, convencera-o de que “a crise” seria duradoura e cruel. A Quinta da Batoca, nos limites do mapa de Portugal, recebia em primeira mão os ventos de Espanha e as notícias de La Fregeneda (a primeira das aldeias) mas os oráculos do poeta soavam sempre mais alto. O velho Doutor Homem, meu pai, atribuía essa relação entre o seu pai e o autor de ‘A Velhice do Padre Eterno’ (o livro nunca entrou nas estantes de Ponte de Lima mas havia um exemplar na casa do Porto) à estada do poeta em Viana do Castelo, onde se tomou de amores pelo Minho, pelas ruas da cidade e pelo mar do Norte. A seu ver apenas isso desculpava o “desvio ideológico” e a amizade que se formou entre aquelas duas almas destinadas a visitarem-se periodicamente.
A “crise” da época era, como mais tarde se dizia, durante a II Guerra, “a falta de víveres”. Dona Ester, minha mãe, atravessou-a com heroísmo e dedicação, e todos pudemos sobreviver. Não voltou “crise” assim. Depois do 25 de Abril “a falta de víveres” ocorreu aqui e ali, mas o Minho, se não era o celeiro da Pátria, estava perto de Espanha e tinha hortas suficientes.
Os Homem não são gente rica. Não o eram no “velho regime”, não o foram durante o constitucionalismo e, seguramente, não o foram durante a República. Poderiam ter sido, não fosse a casmurrice dos antepassados da tia Benedita, exemplares do “liberalismo portuense”, burgueses de Cedofeita, governadores civis ou putativos ministros do reino. Mas a casmurrice falou mais alto; velhos fidalgos dos Arcos, de Ponte de Lima, de Viana ou, mais prosaicamente, dos arredores de Braga, temiam o apocalipse, que viria com os pândegos do príncipe brasileiro ou com o jacobinismo dos advogados do Porto. Resistiram e trabalharam para sustentar a sua solidão política, um vício honrado e caríssimo, hoje como ontem. As “crises” passaram por eles como uma ventania do mar do Minho. Observavam-nas de perto, mas protegidos pela parcimónia e pela mediania, num país que detesta a parcimónia e a mediania. Quando as burguesias do Porto (e do resto do país) ostentavam o carmesim da sua fortuna e do optimismo das suas revoluções, a velha família contentava-se com as sestas à sombra dos pinheiros dos Arcos de Valdevez e com a biblioteca de Ponte de Lima. Tínhamos aprendido que a “crise” seria duradoura e cruel. E permanente. Ainda cá está.
in Domingo - Correio da Manhã - 02 Janeiro 2011
A “crise” da época era, como mais tarde se dizia, durante a II Guerra, “a falta de víveres”. Dona Ester, minha mãe, atravessou-a com heroísmo e dedicação, e todos pudemos sobreviver. Não voltou “crise” assim. Depois do 25 de Abril “a falta de víveres” ocorreu aqui e ali, mas o Minho, se não era o celeiro da Pátria, estava perto de Espanha e tinha hortas suficientes.
Os Homem não são gente rica. Não o eram no “velho regime”, não o foram durante o constitucionalismo e, seguramente, não o foram durante a República. Poderiam ter sido, não fosse a casmurrice dos antepassados da tia Benedita, exemplares do “liberalismo portuense”, burgueses de Cedofeita, governadores civis ou putativos ministros do reino. Mas a casmurrice falou mais alto; velhos fidalgos dos Arcos, de Ponte de Lima, de Viana ou, mais prosaicamente, dos arredores de Braga, temiam o apocalipse, que viria com os pândegos do príncipe brasileiro ou com o jacobinismo dos advogados do Porto. Resistiram e trabalharam para sustentar a sua solidão política, um vício honrado e caríssimo, hoje como ontem. As “crises” passaram por eles como uma ventania do mar do Minho. Observavam-nas de perto, mas protegidos pela parcimónia e pela mediania, num país que detesta a parcimónia e a mediania. Quando as burguesias do Porto (e do resto do país) ostentavam o carmesim da sua fortuna e do optimismo das suas revoluções, a velha família contentava-se com as sestas à sombra dos pinheiros dos Arcos de Valdevez e com a biblioteca de Ponte de Lima. Tínhamos aprendido que a “crise” seria duradoura e cruel. E permanente. Ainda cá está.
in Domingo - Correio da Manhã - 02 Janeiro 2011
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