Páginas de pedagogia e contentamento
Antigamente, naqueles tempos execráveis, longínquos e comandados por Senhores das Trevas, ler, escreve e contar eram etapas fundamentais da vida de qualquer adolescente (temo, nestes tempos modernos, emprestar essa qualidade às crianças, ocupadas que estão a pintar cadernos, a colorir manuais escolares e a martelar nas teclas dos computadores). Enquanto um ser humano não fosse capaz de enumerar três ou quatro reis da primeira dinastia (distinguindo os Afonsos dos Sanchos), escrever um ditado sem ser humilhado pela rasura dos erros ortográficos, fazer uma redacção sobre as estações do ano, apurar um número a partir de uma operação de multiplicar ou de dividir, e saber distinguir um paralelepípedo das pirâmides de Gizé — não era, claramente, um “ser humano”. Estas operações simples revestem-se, afinal (aprendi-o recentemente), de um terrível obscurantismo.
O governo da República, que devia ocupar-se de assuntos de primeira grandeza, festejou esta semana “os resultados” das mais recentes operações estatísticas do nosso ensino, feliz com o reconhecimento de que os nossos laboriosos infantes subiram uns degraus numa escala que o País se encarregou, laboriosamente, de falsificar com antecedência. Parece que há menos chumbos nas escolas; parece-me natural: os meus sobrinhos-netos não sabem soletrar a tabuada e passaram de ano, estando neste momento — parece — a caminho de um doutoramento aos dez ou onze anos. Folheando os seus manuais de História também me dei conta de que se parecem com as estampas que ocuparam o Verão dos seus pais, há muitos anos, e pelos quais — aos doze anos — não se aprende que D. Duarte era filho de D. João I.
Um velho reaccionário sentado na varanda de Moledo não devia ocupar-se destes assuntos. A Pátria passa bem sem ocupar-se dessas minudências. Interessam, antes, as estatísticas (uma forma de mentir com relativa qualidade). O mais chocante, porém, não é a irrelevância das estatísticas; é, antes, o contentamento de ministros, directores, educadores, satisfeitos por saberem que a ignorância foi festejada com louvor estrangeiro e com aquela selvagem inconsciência que se espelha na suas declarações sorridentes. Chego a esta idade convencido — à força — de que a Pátria vai bem, estimável e pacóvia. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava que a educação dos seus filhos (éramos cinco) competia à ordem estabelecida dentro das paredes de casa. Convinha que tivessem boas digestões, bom carácter, e fossem deixados ao arbítrio das coisas — para que aprendessem, pelo menos, a fazer contas.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Dezembro 2010
O governo da República, que devia ocupar-se de assuntos de primeira grandeza, festejou esta semana “os resultados” das mais recentes operações estatísticas do nosso ensino, feliz com o reconhecimento de que os nossos laboriosos infantes subiram uns degraus numa escala que o País se encarregou, laboriosamente, de falsificar com antecedência. Parece que há menos chumbos nas escolas; parece-me natural: os meus sobrinhos-netos não sabem soletrar a tabuada e passaram de ano, estando neste momento — parece — a caminho de um doutoramento aos dez ou onze anos. Folheando os seus manuais de História também me dei conta de que se parecem com as estampas que ocuparam o Verão dos seus pais, há muitos anos, e pelos quais — aos doze anos — não se aprende que D. Duarte era filho de D. João I.
Um velho reaccionário sentado na varanda de Moledo não devia ocupar-se destes assuntos. A Pátria passa bem sem ocupar-se dessas minudências. Interessam, antes, as estatísticas (uma forma de mentir com relativa qualidade). O mais chocante, porém, não é a irrelevância das estatísticas; é, antes, o contentamento de ministros, directores, educadores, satisfeitos por saberem que a ignorância foi festejada com louvor estrangeiro e com aquela selvagem inconsciência que se espelha na suas declarações sorridentes. Chego a esta idade convencido — à força — de que a Pátria vai bem, estimável e pacóvia. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava que a educação dos seus filhos (éramos cinco) competia à ordem estabelecida dentro das paredes de casa. Convinha que tivessem boas digestões, bom carácter, e fossem deixados ao arbítrio das coisas — para que aprendessem, pelo menos, a fazer contas.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Dezembro 2010
<< Home