Uma história natural das fronteiras galegas
Depois da abertura das fronteiras, a Galiza ficou mais próxima, como me advertem os especialistas em tudo. Não vejo nisso vantagens incomparáveis – a Galiza, a terra de D. Álvaro Cunqueiro, de D. Ramón Otero Pedrayo ou da Filarmónica do Lugo ficava bem assim, tremenda e negra, escura, do outro lado do Minho, com os seus polícias de tricórnio, as suas lojas de ‘Ultramarinos’, as livrarias húmidas e eruditas de Santiago de Compostela, o seu linguajar constante e rouco, perfumado de maus tabacos e de cafés de contrabando.
De facto, não vejo grandes vantagens em não fazer aquela amável pausa entre Valença e Tuy para sinalizar a existência de uma fronteira. A província magnífica foi, ao longo dos anos, um gigantesco ‘mesón’ onde os Homem de várias condições se apresentavam cheios de apetite e de um vasto anedotário historiográfico capaz de fazer indignar a corte de Madrid. Mas não era por mal, nunca foi por mal – pelo contrário, havia na travessia das fronteiras um acto de amor quase apaixonado, subtil, picuinhas, dedicado, matreiro. Ir à Galiza, depois da abertura das fronteiras, passou a banalizar não só a Espanha como, também, a Galiza como refúgio de portugueses que “iam ao estrangeiro”. A Galiza deixou de ser “estrangeiro” sem passar, em simultâneo, a ser “a mesma terra” – porque nos separam coisas triviais ou profundas que sempre nos devem continuar a separar para que mantenhamos, precisamente, a vontade de atravessar a fronteira para ir à Galiza.
De Moledo até lá, convenhamos, a distância é curta ou, mesmo, nenhuma. A olho nu, do promontório de Moledo, interpretado pela Ínsua, a Galiza é uma cidade vizinha e disponível para ser atravessada, em busca de silêncio nas montanhas, de anonimato nas ruas, de amêijoas de Villagarcía de Arousa ou de literatura em livrarias adormecidas numa Plaza Mayor para onde o Inverno acaba por transportar todas as neves de Astorga. Não me comove, pois, esse cosmopolitismo que tratou de abolir fronteiras como se, pelo gesto, transformasse o desconhecido em conhecido, o inacessível em acessível, o antigo em moderno. A minha Galiza é antiga – nela passeava-se D. Gonzalo Torrente Ballester nas ruas de El Ferrol e ouviam-se marchas de gaita e sanfona adaptadas das pautas líricas e patrióticas de Pascual Veiga. A fronteira nunca me incomodou. Estava lá, invisível sobre as montanhas de pinheiros e carvalhos de outras eras. Havia um vento galego que anunciava frio e uma corrente do sul que prometia chuva; tirando isso, tudo devia ser registado na fronteira para que soubéssemos que estávamos onde estávamos, sem mentirmos uns aos outros.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Novembro 2010
De facto, não vejo grandes vantagens em não fazer aquela amável pausa entre Valença e Tuy para sinalizar a existência de uma fronteira. A província magnífica foi, ao longo dos anos, um gigantesco ‘mesón’ onde os Homem de várias condições se apresentavam cheios de apetite e de um vasto anedotário historiográfico capaz de fazer indignar a corte de Madrid. Mas não era por mal, nunca foi por mal – pelo contrário, havia na travessia das fronteiras um acto de amor quase apaixonado, subtil, picuinhas, dedicado, matreiro. Ir à Galiza, depois da abertura das fronteiras, passou a banalizar não só a Espanha como, também, a Galiza como refúgio de portugueses que “iam ao estrangeiro”. A Galiza deixou de ser “estrangeiro” sem passar, em simultâneo, a ser “a mesma terra” – porque nos separam coisas triviais ou profundas que sempre nos devem continuar a separar para que mantenhamos, precisamente, a vontade de atravessar a fronteira para ir à Galiza.
De Moledo até lá, convenhamos, a distância é curta ou, mesmo, nenhuma. A olho nu, do promontório de Moledo, interpretado pela Ínsua, a Galiza é uma cidade vizinha e disponível para ser atravessada, em busca de silêncio nas montanhas, de anonimato nas ruas, de amêijoas de Villagarcía de Arousa ou de literatura em livrarias adormecidas numa Plaza Mayor para onde o Inverno acaba por transportar todas as neves de Astorga. Não me comove, pois, esse cosmopolitismo que tratou de abolir fronteiras como se, pelo gesto, transformasse o desconhecido em conhecido, o inacessível em acessível, o antigo em moderno. A minha Galiza é antiga – nela passeava-se D. Gonzalo Torrente Ballester nas ruas de El Ferrol e ouviam-se marchas de gaita e sanfona adaptadas das pautas líricas e patrióticas de Pascual Veiga. A fronteira nunca me incomodou. Estava lá, invisível sobre as montanhas de pinheiros e carvalhos de outras eras. Havia um vento galego que anunciava frio e uma corrente do sul que prometia chuva; tirando isso, tudo devia ser registado na fronteira para que soubéssemos que estávamos onde estávamos, sem mentirmos uns aos outros.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Novembro 2010
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