Antecipando o Natal, com ironia
Chegados a Novembro, o velho Doutor Homem, meu pai, achava que o ano tinha terminado. Dezembro era um mês pedido emprestado ao novo futuro, não porque passasse três semanas a congeminar as festas natalícias – a que ligava pouco – mas porque o enervava a hiperactividade dos outros. Como nós sabíamos, ele recolhia-se em Novembro e só saía desse período de hibernação quando a vida voltava ao normal.
Ele não viveu este tempo em que as festas de Natal começam na primeira quinzena de Novembro, com uma musicalidade irritante ferindo os ouvidos dos transeuntes ou, apenas, assaltando os ouvintes de rádio. Já se sabe que “o ataque ao Natal” é uma guerra impopular e perdida desde o começo; mas não custa nada relembrar que a prosperidade comercial da quadra natalícia é uma das doenças contemporâneas mais cruéis: à medida que “a quadra” se alarga, como as margens de um pântano musical, feérico, colorido, cheio de sinos tiritando às primeiras geadas, mais significado perde o Natal propriamente dito.
Este ano, as minhas irmãs anunciaram que, mal se aproxime o Natal, partirão para temperaturas mais amenas. É uma decisão que contraria o bom-senso, mas que se compreende à luz do cansaço do Natal, uma epidemia que antecede a data e a assassina a golpes de fealdade. A imagem do velho Natal de província, adocicado pela lembrança do musgo, do orvalho, da neve, da mirra e do incenso, das ceias familiares, é um quadro contemporâneo da construção do Titanic. Depois de assinalar o nascimento de Cristo, o Natal passou a ser “a festa da família”, o que nos baralhou as contas uma vez que os Homem organizam a sua festa em pleno Verão, desabrigados e acalorados, entre limonadas e vinho verde de Ponte de Lima.
O velho Doutor Homem, meu pai, poupou-se a tudo isto. Reunida a bibliografia, escolhidos os discos e arrumada grande parte dos assuntos profissionais, encarava Dezembro com a leveza de um irresponsável que vê o Natal aproximar-se sem sentir o temor da data nem a reverência pelas reuniões familiares, em tardes de dias feriados passadas diante da lareira e terçando armas consoante os assuntos do momento. Suponho que este ano lhe seguirei os passos. Enquanto as minhas irmãs fogem para o Sul, procurando um lugar onde não haja sinos e promessas de presentes perdulários, eu irei recolher-me à biblioteca (o nome que em casa se dá ao armazém de livros que a minha sobrinha declarou ‘zona interdita’ a estranhos) aguardando a chegada da procissão familiar. Cumprirei o meu dever.
in Domingo - Correio da Manhã - 28 Novembro 2010
Ele não viveu este tempo em que as festas de Natal começam na primeira quinzena de Novembro, com uma musicalidade irritante ferindo os ouvidos dos transeuntes ou, apenas, assaltando os ouvintes de rádio. Já se sabe que “o ataque ao Natal” é uma guerra impopular e perdida desde o começo; mas não custa nada relembrar que a prosperidade comercial da quadra natalícia é uma das doenças contemporâneas mais cruéis: à medida que “a quadra” se alarga, como as margens de um pântano musical, feérico, colorido, cheio de sinos tiritando às primeiras geadas, mais significado perde o Natal propriamente dito.
Este ano, as minhas irmãs anunciaram que, mal se aproxime o Natal, partirão para temperaturas mais amenas. É uma decisão que contraria o bom-senso, mas que se compreende à luz do cansaço do Natal, uma epidemia que antecede a data e a assassina a golpes de fealdade. A imagem do velho Natal de província, adocicado pela lembrança do musgo, do orvalho, da neve, da mirra e do incenso, das ceias familiares, é um quadro contemporâneo da construção do Titanic. Depois de assinalar o nascimento de Cristo, o Natal passou a ser “a festa da família”, o que nos baralhou as contas uma vez que os Homem organizam a sua festa em pleno Verão, desabrigados e acalorados, entre limonadas e vinho verde de Ponte de Lima.
O velho Doutor Homem, meu pai, poupou-se a tudo isto. Reunida a bibliografia, escolhidos os discos e arrumada grande parte dos assuntos profissionais, encarava Dezembro com a leveza de um irresponsável que vê o Natal aproximar-se sem sentir o temor da data nem a reverência pelas reuniões familiares, em tardes de dias feriados passadas diante da lareira e terçando armas consoante os assuntos do momento. Suponho que este ano lhe seguirei os passos. Enquanto as minhas irmãs fogem para o Sul, procurando um lugar onde não haja sinos e promessas de presentes perdulários, eu irei recolher-me à biblioteca (o nome que em casa se dá ao armazém de livros que a minha sobrinha declarou ‘zona interdita’ a estranhos) aguardando a chegada da procissão familiar. Cumprirei o meu dever.
in Domingo - Correio da Manhã - 28 Novembro 2010
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