Sobre o Leviatão que há em nós
A minha sobrinha queixa-se amargamente (suponho) de que estive três semanas a falar de contabilidade sem – nas suas palavras – eu dizer o que queria ter dito. O que ela supõe que eu gostaria de ter dito é o seguinte: sim, o dr. Salazar, com aquele seus princípios de contabilista de loja de fazenda, ou de auxiliar no almoxarifado de estalagem, tinha razão.
O almoço de domingo passado entreteve-nos nesta discussão. A pátria sofre ataques contabilísticos e parte da família (felizmente, não muito substancial) dedica-se a assuntos conexos. Cada um dá a sua opinião, e a soma é a seguinte: ou economizamos na manteiga ou teremos de a pedir emprestada ao vizinho. Aqui, o problema é duplo: por um lado, o vizinho desconfia de que não há solvência bastante para lhe devolvermos a manteiga; por outro, o vizinho economizou alguma, mas precisa dela para os gastos.
Discutir finanças com recurso a metáforas já é suficientemente mau; mas acrescentar-lhe uma parábola (a da manteiga, de gosto duvidoso) passa a assunto de costumes. Há quase vinte anos que não me dedico à ciência económica – um assunto que ficou arrumado , no Porto, no velho escritório da família, quando decidi retirar-me para os pinhais de Moledo convencido de que a pátria se tinha morigerado e que estávamos no caminho do progresso. Mesmo assim, os hábitos frugais dos Homem, longe da sovinice, recomendaram sempre economias, poupança, aforro – os Homem não confiam no Estado, nem para cobrar o imposto nem para gastá-lo depois.
O velho Doutor Homem, meu pai, tinha gostos moderados e gastos sem expressão. Habituado à contemplação, às sestas de fim de semana e os Verões supliciantes de Ponte de Lima, bastava-lhe considerar que a vida tinha um termo e que ele não estava talhado para decidir quando seria esse dia. Limitava-se a um pequeno-almoço de torradas com pão do dia anterior e à leitura de jornais; o café de cevada mantinha-o erguido durante toda a manhã – e considerava que “jantar fora” era um luxo fora de moda, bom para burgueses e homens sem família. Ele tinha razão no essencial; a ementa dos restaurantes era péssima e os perfumes da cozinha de casa ainda hoje são recordados com saudade. Habituados a poupar no acessório para dar satisfação ao essencial, duas gerações de portugueses remediados puseram as suas economias a salvo, na convicção de que esse sacrifício tinha sido feito por eles e não pelo Estado. Mudou tudo, entretanto. Não há nada na vida das pessoas sobre que o Estado não tenha opinião, desde alta economia até puericultura. E esse é o nosso principal problema.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Maio 2010
O almoço de domingo passado entreteve-nos nesta discussão. A pátria sofre ataques contabilísticos e parte da família (felizmente, não muito substancial) dedica-se a assuntos conexos. Cada um dá a sua opinião, e a soma é a seguinte: ou economizamos na manteiga ou teremos de a pedir emprestada ao vizinho. Aqui, o problema é duplo: por um lado, o vizinho desconfia de que não há solvência bastante para lhe devolvermos a manteiga; por outro, o vizinho economizou alguma, mas precisa dela para os gastos.
Discutir finanças com recurso a metáforas já é suficientemente mau; mas acrescentar-lhe uma parábola (a da manteiga, de gosto duvidoso) passa a assunto de costumes. Há quase vinte anos que não me dedico à ciência económica – um assunto que ficou arrumado , no Porto, no velho escritório da família, quando decidi retirar-me para os pinhais de Moledo convencido de que a pátria se tinha morigerado e que estávamos no caminho do progresso. Mesmo assim, os hábitos frugais dos Homem, longe da sovinice, recomendaram sempre economias, poupança, aforro – os Homem não confiam no Estado, nem para cobrar o imposto nem para gastá-lo depois.
O velho Doutor Homem, meu pai, tinha gostos moderados e gastos sem expressão. Habituado à contemplação, às sestas de fim de semana e os Verões supliciantes de Ponte de Lima, bastava-lhe considerar que a vida tinha um termo e que ele não estava talhado para decidir quando seria esse dia. Limitava-se a um pequeno-almoço de torradas com pão do dia anterior e à leitura de jornais; o café de cevada mantinha-o erguido durante toda a manhã – e considerava que “jantar fora” era um luxo fora de moda, bom para burgueses e homens sem família. Ele tinha razão no essencial; a ementa dos restaurantes era péssima e os perfumes da cozinha de casa ainda hoje são recordados com saudade. Habituados a poupar no acessório para dar satisfação ao essencial, duas gerações de portugueses remediados puseram as suas economias a salvo, na convicção de que esse sacrifício tinha sido feito por eles e não pelo Estado. Mudou tudo, entretanto. Não há nada na vida das pessoas sobre que o Estado não tenha opinião, desde alta economia até puericultura. E esse é o nosso principal problema.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Maio 2010
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