Das cartas dos leitores à ideia de felicidade
Além dos grandes editoriais (antigamente, “artigos de fundo”) e das curiosidades sobre bibliofilia que incluíssem algum dos seus autores de sempre, o velho Doutor Homem, meu pai, coleccionava as páginas do ‘The Daily Telegraph’ onde vinham as cartas dos leitores. Descubro, entre as velhas pastas de recortes, uma ou outra que contêm o precioso material – reunido daria para um romance (na época não havia ainda “a sociologia”, essa ciência moderna que – dizia o velho causídico, descrente e céptico – “misturava socialismo e astrologia”).
Algumas delas mencionam o estado do tempo, dúvidas sobre palavras cruzadas e regras de etiqueta, reparos sobre minudências de história britânica ou diplomática (a data de uma batalha, um título adquirido na Índia, uma viagem através do Suez), receitas de cozinha galesa ou, até, protestos contra a excessiva cobrança de impostos. As cartas mencionavam o título nobiliárquico, se existia, académico ou político – e eram bem escritas; quase tão bem quanto as que, anualmente, o tio Alberto, bibliófilo de São Pedro dos Arcos, enviava aos jornais da Galiza a pronunciar-se sobre a qualidade das ostras de Ribadeo ou de Corcubión, ou aos três periódicos do Porto queixando-se do abandono das estradas de Paredes de Coura. Isso acontecia, lembrava a tia Benedita, porque “ele tinha tempo”. Não é totalmente verdade mas isso não explica a razão que levava o velho Doutor Homem, meu pai, a coleccionar essas cartas publicadas em jornais que dedicavam parte do seu espaço a polémicas fatais sobre problemas de palavras cruzadas.
Os meus irmãos e irmãs (que são optimistas por natureza) acham que a internet, os jogos electrónicos e as séries de televisão não contribuem para o atrofiamento do cérebro e que, pelo contrário – como os tempos mudaram – eu devo abster-me de falar de velharias que não se entendem hoje em dia.
Aos catorze anos, eu economizava dinheiro para livros ou para mais tarde comprar um fato de três peças. Fui criado no meio de livros e o meu avô acreditava que a cultura (bem como o conhecimento da astronomia, da filatelia ou dos princípios gerais da contabilidade) trazia alguma felicidade ou, pelo menos, assuntos para conversas com sujeito, predicado e complemento directo. O velho Doutor Homem, meu pai, educado pelos mestres da ironia, pelo cosmopolitismo da época e pela necessidade de alimentar uma família numerosa, não acreditava na felicidade nem como um direito nem como um ideal – limitava-se a coleccionar as coisas simples das cartas de leitores do ‘Telegraph’. Não vejo outra explicação.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Maio 2010
Algumas delas mencionam o estado do tempo, dúvidas sobre palavras cruzadas e regras de etiqueta, reparos sobre minudências de história britânica ou diplomática (a data de uma batalha, um título adquirido na Índia, uma viagem através do Suez), receitas de cozinha galesa ou, até, protestos contra a excessiva cobrança de impostos. As cartas mencionavam o título nobiliárquico, se existia, académico ou político – e eram bem escritas; quase tão bem quanto as que, anualmente, o tio Alberto, bibliófilo de São Pedro dos Arcos, enviava aos jornais da Galiza a pronunciar-se sobre a qualidade das ostras de Ribadeo ou de Corcubión, ou aos três periódicos do Porto queixando-se do abandono das estradas de Paredes de Coura. Isso acontecia, lembrava a tia Benedita, porque “ele tinha tempo”. Não é totalmente verdade mas isso não explica a razão que levava o velho Doutor Homem, meu pai, a coleccionar essas cartas publicadas em jornais que dedicavam parte do seu espaço a polémicas fatais sobre problemas de palavras cruzadas.
Os meus irmãos e irmãs (que são optimistas por natureza) acham que a internet, os jogos electrónicos e as séries de televisão não contribuem para o atrofiamento do cérebro e que, pelo contrário – como os tempos mudaram – eu devo abster-me de falar de velharias que não se entendem hoje em dia.
Aos catorze anos, eu economizava dinheiro para livros ou para mais tarde comprar um fato de três peças. Fui criado no meio de livros e o meu avô acreditava que a cultura (bem como o conhecimento da astronomia, da filatelia ou dos princípios gerais da contabilidade) trazia alguma felicidade ou, pelo menos, assuntos para conversas com sujeito, predicado e complemento directo. O velho Doutor Homem, meu pai, educado pelos mestres da ironia, pelo cosmopolitismo da época e pela necessidade de alimentar uma família numerosa, não acreditava na felicidade nem como um direito nem como um ideal – limitava-se a coleccionar as coisas simples das cartas de leitores do ‘Telegraph’. Não vejo outra explicação.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Maio 2010
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