domingo, maio 09, 2010

Sobre o bulício das velhas estradas

Recordo, com alguma melancolia – Maio é o mês em que as mimosas começam a despontar –, as velhas estradas do Minho: estreitas, curvilíneas, de empedrado, com rectas excepcionais, passando por florestas de pinheiros e servindo de observatório do litoral. Era antes da democracia, da indústria automóvel e do aumento do preço da gasolina. Com essas instituições, o carro passou a ser um bem tão indispensável como, outrora, o relógio que todo o noivo devia enfiar no bolso do colete. O bulício dos pinhais, para recordar um dos poemas mais mortíferos da nossa Língua, foi substituído pelo ruído dos automóveis a passar na estrada, lá em cima. Depois, pelo das máquinas que abriam mais estradas paralelas. Não menciono, já, os caminhos perdidos nas serras, por onde chegávamos aos Arcos de Valdevez e ao Lindoso, ou por onde subíamos e descíamos até conseguir chegar ao velho pontão carcomido pela água da lagoa de S. Pedro de Arcos. Era aí que ficava, bem perto, o refúgio onde se albergara o Tio Alberto, bibliófilo emérito, gastrónomo, jurista, aventureiro e autodidacta.

Ele repousa hoje no velho cemitério – decorado por um fila de invejáveis ciprestes, em cuja base cresceram trepadeira de rosas de Santa Teresinha – onde vários Homem enfrentaram a escuridão da eternidade. Nenhum deles conheceu a avidez de hoje pelas auto-estradas – viveram antes da democracia e da televisão a cores, tomaram o seu lugar em comboios onde o pó assentou e a ferrugem acabou por devorar os varandins, ignoraram a Alta Velocidade (a Tia Benedita continuaria a ignorá-la se vivesse hoje), nunca conheceram vertigem maior do que as trovoadas que assolaram os telhados do velho casarão de Ponte de Lima onde uma invejável cópia do retrato do senhor Dom Miguel sobrevive como uma assinatura de família, mostrando a que século pertencemos e a que fuligem do nosso atraso seremos devolvidos pela História, cruel, vitoriosa e implacável.

O único campeão das estradas do Minho dessa época foi, evidentemente, o Tio Alberto. Em 1967 compareceu em Ponte de Lima na companhia de um Alfa Romeo Giulietta Spider – um “vero Osso di Seppia”, como então dizia a bela sociedade de Milão – que foi considerado um atrevimento na época e um desafio ontológico à nossa modéstia congénita. Guiei-o várias vezes e senti-me, na época, um actor de cinema. Imaginei-me ao lado de uma jovem brasileira e sardenta com quem outrora passeei na ainda mais jovem Copacabana dos anos cinquenta. Mas isso é outra história que não tem a ver com o bulício das nossas estradas.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Abril 2010