As más evidências da contabilidade
Vivemos na época da contabilidade. O velho Doutor Homem, meu pai, era especialista em direito bancário e conhecia os seus meandros mais subtis; creio que por isso me encaminhou para a área “do Civil”, acreditando – suponho que erradamente – que o meu “temperamento” me iria indispor contra essa comunhão com o “deve” e o “haver”. Tirando um tio dos Arcos, que mencionava com agrado e certa imponência a “ciência do notariado” e mesmo a “beleza dos actos notariais”, ninguém mostrava demasiada deferência em relação às suas ocupações profissionais. Isso devia-se, estou em crer, a uma certa independência de espírito, bem como à noção de que o mundo, se não acabava nas últimas videiras de Caminha ou nos cúmulos de Santa Tecla, também não podia encerrar-se nas paredes de um escritório, por muito confortável que fosse.
Já o meu avô paterno, administrador de quintas do Douro e conselheiro de alguns exportadores ingleses de vinho do Porto (a quem teve de ler e recomendar ingestões regulares de Camilo Castelo Branco, para lhes mostrar a natureza dos nossos fígados), privava com a contabilidade e era íntimo das operações essenciais e acessórias dessa ciência que os seus filhos, modernos para a época e educados como varões cosmopolitas, desprezaram com método e desprendimento.
Abrir as páginas dos jornais, hoje em dia (mesmo para um velho de Moledo que foi contemporâneo da revolução da penicilina e assistiu às primeiras polémicas sobre os fatos de banho femininos nas praias do Minho), é um exercício penoso que requer conhecimentos contabilísticos e operações com percentagens e várias casas decimais. A isso se dedicam os políticos hoje em dia, coisa que devia indignar tanto Disraeli como o velho Doutor Homem, meu pai. A posteridade recorda a máxima defendida pelo dr. Salazar, que vivia agarrado ao Almanaque Bertrand, muito útil às donas de casa: não gastar mais do que se aforra. Este princípio era válido para a economia de então, em que se faziam coisas, se produziam coisas, se vendiam coisas – e se conhecia o preço de tudo isso.
Como princípio, é elementar. A independência das famílias dependia dele. Os Estados arrastam, no entanto, uma clientela difícil de satisfazer e a quem os políticos prometeram o direito à felicidade e ao ‘superávit’. Era provinciano, senil e pobre – até como princípio. Mas, infelizmente, ainda não se inventou melhor forma de praticar a ciência da contabilidade. As coisas são como são, explico eu à minha sobrinha Maria Luísa que, na véspera de cumprir 40 anos, ainda não cedeu às evidências.
in Domingo - Correio da Manhã - 16 Maio 2010
Já o meu avô paterno, administrador de quintas do Douro e conselheiro de alguns exportadores ingleses de vinho do Porto (a quem teve de ler e recomendar ingestões regulares de Camilo Castelo Branco, para lhes mostrar a natureza dos nossos fígados), privava com a contabilidade e era íntimo das operações essenciais e acessórias dessa ciência que os seus filhos, modernos para a época e educados como varões cosmopolitas, desprezaram com método e desprendimento.
Abrir as páginas dos jornais, hoje em dia (mesmo para um velho de Moledo que foi contemporâneo da revolução da penicilina e assistiu às primeiras polémicas sobre os fatos de banho femininos nas praias do Minho), é um exercício penoso que requer conhecimentos contabilísticos e operações com percentagens e várias casas decimais. A isso se dedicam os políticos hoje em dia, coisa que devia indignar tanto Disraeli como o velho Doutor Homem, meu pai. A posteridade recorda a máxima defendida pelo dr. Salazar, que vivia agarrado ao Almanaque Bertrand, muito útil às donas de casa: não gastar mais do que se aforra. Este princípio era válido para a economia de então, em que se faziam coisas, se produziam coisas, se vendiam coisas – e se conhecia o preço de tudo isso.
Como princípio, é elementar. A independência das famílias dependia dele. Os Estados arrastam, no entanto, uma clientela difícil de satisfazer e a quem os políticos prometeram o direito à felicidade e ao ‘superávit’. Era provinciano, senil e pobre – até como princípio. Mas, infelizmente, ainda não se inventou melhor forma de praticar a ciência da contabilidade. As coisas são como são, explico eu à minha sobrinha Maria Luísa que, na véspera de cumprir 40 anos, ainda não cedeu às evidências.
in Domingo - Correio da Manhã - 16 Maio 2010
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