Um pobre botânico entre bárbaros ao acaso
A botânica limiana foi um mistério que ficou por esclarecer: o emaranhado de videiras de enforcado, de freixos e choupos, de castanheiros na serra e de pinhais à beira da estrada sempre contribuiu para que aquele verde natural se parecesse com um quadro arrumado, como nas estampas inglesas. O velho Doutor Homem, meu pai, nunca se comoveu com a Natureza – não lhe tinha horror, mas desprezava as cantilenas bucólicas e a enumeração de benefícios prodigalizados pelo oxigénio das províncias. Ele, que era sobretudo um homem da cidade, afirmava desconhecer a existência de japoneiras e de magnólias nos jardins do Porto, mesmo se se sentava diante de uma dessas árvores. Tudo o que tivesse uma copa, um tronco e se assemelhasse verdadeiramente a uma espécie botânica era para ele um enigma a contornar com desinteresse.
Durante as férias de Verão em Ponte de Lima, o velho Doutor Homem, meu pai, costumava mesmo pagar cinco escudos a cada neto para que eles arrancassem os gladíolos do jardim, uma das plantas a que a Tia Benedita dedicava alguma devoção (Dona Ester, minha mãe, acreditava que a generosidade do gesto tinha mais a ver com a vontade em se ver livre da gritaria do que com a sua aversão às plantas). Refugiado no escritório, ouvindo discos da sua soprano preferida, Anna Moffo, o velho causídico evitava o contacto com os campos e as tarefas de jardinagem, com o argumento de que a Natureza ficava bem na pintura em geral, mas que, vista de perto, tinha inconvenientes.
Pelo contrário, eu fui educado por Dona Ester, minha mãe, na crença de que o ar livre, os areais de Afife, os canteiros da Foz, os pinhais de Viana e as florestas em geral eram contributos para o equilíbrio emocional. Porém, a minha vida como botânico começou muito mais tarde e como uma prova de que a preguiça não tem limites no género humano. Foi a botânica – o conhecimento das espécies, a paixão pela história dos hibiscos ou das gardénias, a perseguição de um exemplar raro – que me permitiu, ao longo da vida, reunir argumentos para não sair de casa, cuidando dos vasos e providenciando sombra e sol conforme as necessidades. O meu tio Alberto, gastrónomo e bibliómano de São Pedro dos Arcos, achava a ocupação “um tanto trapalhona” – também ele, vivendo numa das colinas mais verdes do Minho, tinha pela Natureza um desinteresse notório. Achava que os rios eram interessantes consoante a temporada da lampreia ou da truta; e que as hortas ficavam muito bem enquadradas junto dos povoados.
Quando vejo a copa dos pinhais de Moledo recortadas no céu amedrontado do entardecer, a verdade é que não penso na Natureza. Penso na música. Mas é outro tema.
in Domingo - Correio da Manhã - 28 Março 2010
Durante as férias de Verão em Ponte de Lima, o velho Doutor Homem, meu pai, costumava mesmo pagar cinco escudos a cada neto para que eles arrancassem os gladíolos do jardim, uma das plantas a que a Tia Benedita dedicava alguma devoção (Dona Ester, minha mãe, acreditava que a generosidade do gesto tinha mais a ver com a vontade em se ver livre da gritaria do que com a sua aversão às plantas). Refugiado no escritório, ouvindo discos da sua soprano preferida, Anna Moffo, o velho causídico evitava o contacto com os campos e as tarefas de jardinagem, com o argumento de que a Natureza ficava bem na pintura em geral, mas que, vista de perto, tinha inconvenientes.
Pelo contrário, eu fui educado por Dona Ester, minha mãe, na crença de que o ar livre, os areais de Afife, os canteiros da Foz, os pinhais de Viana e as florestas em geral eram contributos para o equilíbrio emocional. Porém, a minha vida como botânico começou muito mais tarde e como uma prova de que a preguiça não tem limites no género humano. Foi a botânica – o conhecimento das espécies, a paixão pela história dos hibiscos ou das gardénias, a perseguição de um exemplar raro – que me permitiu, ao longo da vida, reunir argumentos para não sair de casa, cuidando dos vasos e providenciando sombra e sol conforme as necessidades. O meu tio Alberto, gastrónomo e bibliómano de São Pedro dos Arcos, achava a ocupação “um tanto trapalhona” – também ele, vivendo numa das colinas mais verdes do Minho, tinha pela Natureza um desinteresse notório. Achava que os rios eram interessantes consoante a temporada da lampreia ou da truta; e que as hortas ficavam muito bem enquadradas junto dos povoados.
Quando vejo a copa dos pinhais de Moledo recortadas no céu amedrontado do entardecer, a verdade é que não penso na Natureza. Penso na música. Mas é outro tema.
in Domingo - Correio da Manhã - 28 Março 2010
<< Home