Sobre o clima e outras incertezas
Quando havia estações do ano, estávamos por esta altura a preparar a Primavera. Na literatura, a abundância de metáforas e de imagens sobre o assunto prova que a humanidade deposita – de ano para ano – grandes esperanças no mês de Março. Romances há que celebram, de passagem, a tepidez das primeiras tardes de sol depois dos vendavais e das geadas de Inverno; as personagens, reabilitadas pela meteorologia, ficam disponíveis para ultrapassar em desvario os seus criadores; o mundo, digamos, reorganiza-se com a chegada da Primavera, a estação do ano que mais má literatura produziu, tendo em conta as descrições extravagantes que o romantismo perpetuou e que a falta de talento sempre desculpa por misericórdia e preguiça. Mandasse eu, e haveria uma quarentena literária acerca da Primavera e das primeiras tardes tépidas do ano.
No velho Porto havia um requebro no céu, concedo: uma espécie de reconciliação da cidade não com a tepidez da literatura mas com o conforto das casas, com os domingos da Foz, com os crepúsculos mais tardios do rio e com o guarda-roupa que, finalmente, retomava o conceito de meia-estação.
A família sempre prezou os meteorologistas e devotou, durante algum tempo, certa devoção ao dr. Anthímio de Azevedo. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe sobretudo o nome e a dicção, além da forma bondosa com que se referia ao anti-ciclone dos Açores e à costa portuguesa a norte do Cabo Carvoeiro. Já o meu pai, pelo contrário, prolongava o pessimismo antropológico dos Homem ao ponto de imitar a Tia Benedita: mal ouvia as previsões meteorológicas encostava o nariz à janela, ou abria-a de par em par, para contemplar o céu e descortinar os cúmulos de nuvens que ambos interpretavam de acordo com a sua sabedoria de estudiosos do clima minhoto (sobretudo o de Ponte de Lima), o pilar meteorológico por onde todas as previsões deviam, em princípio, alinhar-se.
Tal como os sacerdotes das religiões de outrora, várias coisas serviam para estabelecer as suas previsões meteorológicas, com nítida preferência para os sinais do reumatismo, que anunciavam as mudanças de estação. O velho Doutor Homem, meu pai, enfrentava as agruras do clima com a incerteza de um cáustico e a ironia dos cépticos. O dr. Anthímio, ai dele, não fazia parte das suas referências. Durante meses anotou numa agendinha do Banco Pinto de Magalhães as ocasiões em que o sábio da meteorologia se enganava nas previsões. Era a sua vingança contra a ciência moderna e a mania de as pessoas gostarem da Primavera.
in Domingo - Correio da Manhã - 8 de Março 2010
No velho Porto havia um requebro no céu, concedo: uma espécie de reconciliação da cidade não com a tepidez da literatura mas com o conforto das casas, com os domingos da Foz, com os crepúsculos mais tardios do rio e com o guarda-roupa que, finalmente, retomava o conceito de meia-estação.
A família sempre prezou os meteorologistas e devotou, durante algum tempo, certa devoção ao dr. Anthímio de Azevedo. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe sobretudo o nome e a dicção, além da forma bondosa com que se referia ao anti-ciclone dos Açores e à costa portuguesa a norte do Cabo Carvoeiro. Já o meu pai, pelo contrário, prolongava o pessimismo antropológico dos Homem ao ponto de imitar a Tia Benedita: mal ouvia as previsões meteorológicas encostava o nariz à janela, ou abria-a de par em par, para contemplar o céu e descortinar os cúmulos de nuvens que ambos interpretavam de acordo com a sua sabedoria de estudiosos do clima minhoto (sobretudo o de Ponte de Lima), o pilar meteorológico por onde todas as previsões deviam, em princípio, alinhar-se.
Tal como os sacerdotes das religiões de outrora, várias coisas serviam para estabelecer as suas previsões meteorológicas, com nítida preferência para os sinais do reumatismo, que anunciavam as mudanças de estação. O velho Doutor Homem, meu pai, enfrentava as agruras do clima com a incerteza de um cáustico e a ironia dos cépticos. O dr. Anthímio, ai dele, não fazia parte das suas referências. Durante meses anotou numa agendinha do Banco Pinto de Magalhães as ocasiões em que o sábio da meteorologia se enganava nas previsões. Era a sua vingança contra a ciência moderna e a mania de as pessoas gostarem da Primavera.
in Domingo - Correio da Manhã - 8 de Março 2010
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