Votar de acordo com a meteorologia
A política mudou muito – desde que me lembro. Os Homem, mesmo que voluntariamente afastados da ribalta, nunca deixaram de conspirar no círculo doméstico. Ao velho Doutor Homem, meu pai, afligia-o a imagem do “velho torrão” governado pelo dr. Salazar e administrado com uma folha de almaço para tomar notas sobre uma campanha das vindimas. Ele suspirava por grandeza – coisa que era difícil nesses tempos – e por civilização. Tinha as suas coisas. Mas, recordando os seus tempos londrinos, acreditava que a política se discutia com firmeza e, curiosamente, com sentido de humor.
Não assistiu à “modernização da política” e à discussão sobre se a vida sexual das famílias devia ser decidida pelo Estado, que também decidiria sobre o nível de colesterol aceitável pelo meu bom clínico de Viana (que me recomenda passagens de rojões à minhota em duas ou três vezes por ano) ou sobre minudências de despenseiro. Um Estado assim, transformado em almoxarife e governanta, não estaria nas suas previsões. Quando o ar se tornava irrespirável, deambulava pelo velho casarão de Ponte de Lima e fazia planos para os próximos tempos. À distância, entendo-o bem: ele vivia a solidão dos homens livres que não prestam contas sobre os livros que lêem nem sobre o Deus que veneram.
O mundo tornou-se pequeno e nada afável. Ao Estado subiram governantas e almoxarifes que pretendem decidir a vida dos seus semelhantes, organizando-lhes o calendário das obrigações como antes se organizava num convento a hora das orações. A namorada holandesa do meu sobrinho Pedro acha interessante esta família de bibliófilos, gastrónomos, botânicos, fugitivos, advogados, agricultores – e de gente que continua a viver como se fossem vivos, verdadeiramente, os retratos que guardam nas paredes. Aproveitando o final do Verão, ela passeou a sua fragilidade loira pelo areal de Moledo, cujas águas devem ser ligeiramente menos frias do que as da sua Frísia natal. Compreendendo que havia eleições em breve, quis saber se a família já tinha feito as suas opções e decidido o voto.
“É só dia 27”, respondeu-lhe Maria Luísa, a minha sobrinha. “Está quase”, voltou ela. Maria Luísa encolheu os ombros e perguntou: “O tio vai votar de manhã ou de tarde.” Este ano votarei de tarde, esclareci, acho que para me mostrar desconfiado sobre a meteorologia. “Ah, então”, começou ela a explicar à holandesa, “vais ter de perguntar a Dona Elaine o que é o almoço. Consoante a ementa, assim será o voto. Pelo menos costuma ser.” A frísia abriu a boca mas não disse nada. Maria Luísa continuou a ler o livro.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Setembro 2009
Não assistiu à “modernização da política” e à discussão sobre se a vida sexual das famílias devia ser decidida pelo Estado, que também decidiria sobre o nível de colesterol aceitável pelo meu bom clínico de Viana (que me recomenda passagens de rojões à minhota em duas ou três vezes por ano) ou sobre minudências de despenseiro. Um Estado assim, transformado em almoxarife e governanta, não estaria nas suas previsões. Quando o ar se tornava irrespirável, deambulava pelo velho casarão de Ponte de Lima e fazia planos para os próximos tempos. À distância, entendo-o bem: ele vivia a solidão dos homens livres que não prestam contas sobre os livros que lêem nem sobre o Deus que veneram.
O mundo tornou-se pequeno e nada afável. Ao Estado subiram governantas e almoxarifes que pretendem decidir a vida dos seus semelhantes, organizando-lhes o calendário das obrigações como antes se organizava num convento a hora das orações. A namorada holandesa do meu sobrinho Pedro acha interessante esta família de bibliófilos, gastrónomos, botânicos, fugitivos, advogados, agricultores – e de gente que continua a viver como se fossem vivos, verdadeiramente, os retratos que guardam nas paredes. Aproveitando o final do Verão, ela passeou a sua fragilidade loira pelo areal de Moledo, cujas águas devem ser ligeiramente menos frias do que as da sua Frísia natal. Compreendendo que havia eleições em breve, quis saber se a família já tinha feito as suas opções e decidido o voto.
“É só dia 27”, respondeu-lhe Maria Luísa, a minha sobrinha. “Está quase”, voltou ela. Maria Luísa encolheu os ombros e perguntou: “O tio vai votar de manhã ou de tarde.” Este ano votarei de tarde, esclareci, acho que para me mostrar desconfiado sobre a meteorologia. “Ah, então”, começou ela a explicar à holandesa, “vais ter de perguntar a Dona Elaine o que é o almoço. Consoante a ementa, assim será o voto. Pelo menos costuma ser.” A frísia abriu a boca mas não disse nada. Maria Luísa continuou a ler o livro.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Setembro 2009
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