Nós, os ignorados no país de Eça
O cronista dedica-se esta semana a apresentar o livro de Maria Filomena Mónica sobre Eça de Queirós.
Ao ler a biografia de Eça de Queirós, da Doutora Filomena Mónica, relembro que, se em Eça de Queirós há um personagem querido dos Homem, esse é o vetustíssimo Jacinto Galeão, que o senhor D. Miguel apanhou do chão numa tarde soalheira de Benfica. O episódio vem na ‘Cidade e as Serras’. Jacinto Galeão abandona o país mal o príncipe embarca em Sines na direcção do exílio definitivo – e os Homem, para manter um módico de decência e não se fingirem de esquecidos, fizeram o mínimo que podiam fazer: minimizar os estragos, aprender a virtude da derrota e manterem-se afastados da ribalta. Creio que Eça de Queirós trataria amavelmente os Homem dessas eras – como personagens vagamente cómicos, inimputáveis acerca da política, respeitadores da gramática, tratando do jardim e guardando bibliografias. Digamos que a nós, os minhotos do Portugal velho, nos coube a melhor parte de Eça – sermos ignorados.
Nessa época, a nossa família já não lia ‘A Nação’ nem se incomodava com a religião velha ou o casamento civil. Estava retirada. Depois da Maria da Fonte e antes da Patuleia, estávamos preparados para os romances de Eça. O meu avô, administrador de quintas no Douro, tratou mesmo de investigar os pastores anglicanos do Porto, a fim de verificar se existiria algum Craft (como o Craft de ‘Os Maias’) depois de ter conferido que era impossível encontrar o rasto do pai da Sra. Condessa de Gouvarinho. Impossível era encontrar o nosso rasto. Nós, velharias, ficávamos de fora desse país distante que se corrompia e sofria nas páginas de Eça, decompondo-se como personagens de uma farsa ou de uma comédia. Tínhamos sido vencidos há muito tempo; a democracia, a sociedade liberal, não era assunto nosso.
Sinto por ele, Eça, depois de ler a biografia da Doutora Filomena Mónica, a nostalgia que se sente diante das grandes figuras de tragédia – mas uma tragédia silenciosa, surda, alimentada por um desejo profundo de beleza. Uma beleza que não encontrou na Pátria e que colocou nas melhores páginas dos seus romances. Pessoalmente, lamento apenas que Eça não tenha valorizado a Sra. condessa de Gouvarinho, com o seu perfume de verbena e os seus cabelos ruivos, o seu desejo de infidelidade e de romance; naquele mundo corrompido pela política e pelo dinheiro, pela ignorância e pela preguiça, faz falta alguém que genuinamente deseje o pecado e não o disfarce com literatura ou virtudes cívicas.
Derrotados na primeira metade do século XIX e educados pelas catástrofes, julgámos que a eternidade não existia. Esquecemo-nos de Eça.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 de Julho 2009
Ao ler a biografia de Eça de Queirós, da Doutora Filomena Mónica, relembro que, se em Eça de Queirós há um personagem querido dos Homem, esse é o vetustíssimo Jacinto Galeão, que o senhor D. Miguel apanhou do chão numa tarde soalheira de Benfica. O episódio vem na ‘Cidade e as Serras’. Jacinto Galeão abandona o país mal o príncipe embarca em Sines na direcção do exílio definitivo – e os Homem, para manter um módico de decência e não se fingirem de esquecidos, fizeram o mínimo que podiam fazer: minimizar os estragos, aprender a virtude da derrota e manterem-se afastados da ribalta. Creio que Eça de Queirós trataria amavelmente os Homem dessas eras – como personagens vagamente cómicos, inimputáveis acerca da política, respeitadores da gramática, tratando do jardim e guardando bibliografias. Digamos que a nós, os minhotos do Portugal velho, nos coube a melhor parte de Eça – sermos ignorados.
Nessa época, a nossa família já não lia ‘A Nação’ nem se incomodava com a religião velha ou o casamento civil. Estava retirada. Depois da Maria da Fonte e antes da Patuleia, estávamos preparados para os romances de Eça. O meu avô, administrador de quintas no Douro, tratou mesmo de investigar os pastores anglicanos do Porto, a fim de verificar se existiria algum Craft (como o Craft de ‘Os Maias’) depois de ter conferido que era impossível encontrar o rasto do pai da Sra. Condessa de Gouvarinho. Impossível era encontrar o nosso rasto. Nós, velharias, ficávamos de fora desse país distante que se corrompia e sofria nas páginas de Eça, decompondo-se como personagens de uma farsa ou de uma comédia. Tínhamos sido vencidos há muito tempo; a democracia, a sociedade liberal, não era assunto nosso.
Sinto por ele, Eça, depois de ler a biografia da Doutora Filomena Mónica, a nostalgia que se sente diante das grandes figuras de tragédia – mas uma tragédia silenciosa, surda, alimentada por um desejo profundo de beleza. Uma beleza que não encontrou na Pátria e que colocou nas melhores páginas dos seus romances. Pessoalmente, lamento apenas que Eça não tenha valorizado a Sra. condessa de Gouvarinho, com o seu perfume de verbena e os seus cabelos ruivos, o seu desejo de infidelidade e de romance; naquele mundo corrompido pela política e pelo dinheiro, pela ignorância e pela preguiça, faz falta alguém que genuinamente deseje o pecado e não o disfarce com literatura ou virtudes cívicas.
Derrotados na primeira metade do século XIX e educados pelas catástrofes, julgámos que a eternidade não existia. Esquecemo-nos de Eça.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 de Julho 2009
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