Almada e Dantas: um combate entre o velho e o novo
O velho Doutor Homem, meu pai, era o nosso fiel da balança. Em quase tudo ele introduziu um módico de sensatez e de morigeração – o que não o impedia de alimentar as suas obsessões nem as excentricidades com que nos habituou a anunciar-se pela vida fora como o melhor de todos nós.
Uma das questões versava o Dr. Júlio Dantas, uma figura respeitável e muito mais elegante – ou ‘dandy’ – do que o dr. Salazar. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que as botas, os fatos, as gravatas, os punhos e os sobretudos do antigo catedrático de Coimbra chegavam a Lisboa directamente da “Saville Road de Santa Comba Dão”. Na sua juventude, ele estivera várias vezes em Londres – de onde, no dizer do meu avô, que nunca lera Kingsley Amis, vinha tudo o que era preciso conhecer: literatura, imprensa, economia e ideias políticas. O velho Doutor Homem, meu pai, acrescentou-lhe a moda, comprada com parcimónia mas entusiasmo em Saville Road: as malhas dos ‘cardigans’, o ‘tweed’ (com que só rivalizava o irlandês, de Donegal), os sapatos, os chapéus, as abotoaduras de colarinho, as peúgas e, naturalmente, o tecido das camisas e o corte perfeito dos fatos, que ele introduziu no catálogo do alfaiate de família, que ficava nos Clérigos. A verdade é que alguns desses cortes, fatos, cachecóis e ‘cardigans’ continuam actuais e, correndo o risco de surpreender a minha sobrinha Maria Luísa, permanecem a uso.
O Dr. Júlio Dantas era considerado um modelo de elegância – um dândi na política como na literatura. Na verdade, nenhuma das coisas eram muito apreciadas na família, sobretudo quando se falou no Nobel para Dantas. A ironia dos Homem transformava-se frequentemente em crueldade e sarcasmo carregado de altivez, e nenhuma das obras do editorialista era especialmente prezada, embora nenhuma delas entrasse no índex das nossas bibliotecas. O pobre Dr. Dantas ficou conhecido da minha sobrinha e creio que de toda a sua geração, justamente, apenas pelo ‘manifesto de Almada Negreiros’ – um monólogo desconjuntado e risonho escrito na juventude por aquele que viria a ser um admirador do dr. Salazar. O velho Doutor Homem, meu pai, que apreciava a pintura de Almada, dizia que a História havia de vingar-se e um dia alguém teria de redescobrir o talento de Dantas.
A eternidade, mais do que os deuses, escreve direito por linhas tortas. Num dos seus encontros na baixa lisboeta, conta-se que o Dr. Júlio Dantas murmura, depois de ter sido cumprimentado pelo iconoclasta: “Este Almada, sempre tão velho, coitado!”
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Julho 2009
Uma das questões versava o Dr. Júlio Dantas, uma figura respeitável e muito mais elegante – ou ‘dandy’ – do que o dr. Salazar. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que as botas, os fatos, as gravatas, os punhos e os sobretudos do antigo catedrático de Coimbra chegavam a Lisboa directamente da “Saville Road de Santa Comba Dão”. Na sua juventude, ele estivera várias vezes em Londres – de onde, no dizer do meu avô, que nunca lera Kingsley Amis, vinha tudo o que era preciso conhecer: literatura, imprensa, economia e ideias políticas. O velho Doutor Homem, meu pai, acrescentou-lhe a moda, comprada com parcimónia mas entusiasmo em Saville Road: as malhas dos ‘cardigans’, o ‘tweed’ (com que só rivalizava o irlandês, de Donegal), os sapatos, os chapéus, as abotoaduras de colarinho, as peúgas e, naturalmente, o tecido das camisas e o corte perfeito dos fatos, que ele introduziu no catálogo do alfaiate de família, que ficava nos Clérigos. A verdade é que alguns desses cortes, fatos, cachecóis e ‘cardigans’ continuam actuais e, correndo o risco de surpreender a minha sobrinha Maria Luísa, permanecem a uso.
O Dr. Júlio Dantas era considerado um modelo de elegância – um dândi na política como na literatura. Na verdade, nenhuma das coisas eram muito apreciadas na família, sobretudo quando se falou no Nobel para Dantas. A ironia dos Homem transformava-se frequentemente em crueldade e sarcasmo carregado de altivez, e nenhuma das obras do editorialista era especialmente prezada, embora nenhuma delas entrasse no índex das nossas bibliotecas. O pobre Dr. Dantas ficou conhecido da minha sobrinha e creio que de toda a sua geração, justamente, apenas pelo ‘manifesto de Almada Negreiros’ – um monólogo desconjuntado e risonho escrito na juventude por aquele que viria a ser um admirador do dr. Salazar. O velho Doutor Homem, meu pai, que apreciava a pintura de Almada, dizia que a História havia de vingar-se e um dia alguém teria de redescobrir o talento de Dantas.
A eternidade, mais do que os deuses, escreve direito por linhas tortas. Num dos seus encontros na baixa lisboeta, conta-se que o Dr. Júlio Dantas murmura, depois de ter sido cumprimentado pelo iconoclasta: “Este Almada, sempre tão velho, coitado!”
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Julho 2009
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