domingo, julho 12, 2009

Sobre a felicidade que vem nos livros

Nem tudo o que apreciamos, mesmo ultrapassada a moderação, tem importância para os outros. O velho Doutor Homem, meu pai, habituou-nos a esta espécie de máxima barroca como garantia da nossa própria liberdade; se a frase é obtusa (o meu pai lera demasiado Sterne), o princípio é fatal e verdadeiro.

Os que se habituaram à solidão cedo descobriram o prazer que retiram das coisas íntimas – um livro folheado, uma vista sobre os pinhais, a contemplação da velhice, uma biblioteca desordenada. Para que servem os livros, amontoados e desequilibrados? Entre mim e eles, nestas tardes de calor, fechadas as portadas de madeira da casa de Moledo, não há diálogo, não há – como se diz agora – interacção. Eu limito--me a estar deste lado, diante deles, olhando-os como uma estampa ou como um mapa de um velho atlas desactualizado.

Acreditar que destas coisas alguém 'retirará algum prazer' parece-me exagero de egocentrista – o mundo está bem feito como está: com futebol, homicídios, tribunais, historiadores felizes e políticos optimistas. A simples existência desses factores há-de ser decisiva para os que acreditam num mundo mais solitário e mais verdadeiro. A existência humana não foi descoberta pela democracia, e nem todos comungam dos mesmos prazeres.

Os Homem juntaram a sua convicção de conservadores à evidência de um espírito liberal – que não se alimenta do jacobinismo que desgraçou a pátria há duzentos anos. Conservadores e liberais ao mesmo tempo, acreditaram na razão e na prudência; e porque as vicissitudes da história os condenaram a viver no mundo dos derrotados, aprenderam também a arte de fingir que aceitam as coisas como elas são. O velho Doutor Homem gabava à Tia Benedita a dissimulação que a impediu de cair no ressentimento e no ódio; a matriarca da família, como minhota de Ponte de Lima, conhecera as virtudes da ironia e do sarcasmo; o velho causídico optou pela bibliofilia como remédio para não enfrentar a degradação da espécie. Dois caminhos que se encontravam amiúde; nenhum deles queria mudar o mundo (coisa que os afligia e lhes estragava as digestões), nenhum deles impunha aos outros uma moral ou até uma versão do planisfério.

A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco e que as certezas se esvaem com a primeira tempestade de Outono. Devolvo-me aos livros, como de costume. Eles não falam muito.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Julho 2009