Variações de Moledo sobre a caligrafia de outrora
Os meus sobrinhos-netos manuseiam a internet como se tivessem nascido de um computador e mostram-me como eu pertenço ao século XIX, a um mundo em que a palavra “estonteante” só raramente estava relacionada com a palavra “velocidade”.
Quando, há dez anos, iniciei as minhas desventuras como cronista eu tinha dificuldade em encarar a palavra “fax”. Eu escrevia em folhas brancas, imaculadas, que depois D. Elaine (a governanta deste eremitério de Moledo) transportava até à estação de correios para serem enviadas por fax. A caneta Parker, herdada do velho Doutor Homem, meu pai, e que servira para celebrar o seu contrato de casamento com Dona Ester, minha mãe, acompanha-me desde então como a fiel pluma que alimenta a vaidade de um velho.
A minha sobrinha Maria Luísa pensou, na época, em instalar um aparelho de fax em casa, ao canto da biblioteca. Fê-lo apesar dos meus protestos sem entusiasmo – no fundo, eu apreciava a “era da velocidade”. Periodicamente, ao fim-de-semana, transportava consigo um computador para onde copiava diligentemente os meus textos, terminando a operação com um clic e um estalinho nos dedos, anunciando que “a crónica já foi”, como se a Internet tivesse nascido no mesmo dia em que aprendeu a juntar letras. Ela nutria alguma ternura pela minha letra de antigo advogado, mas sopesava os argumentos e achava-me capaz de aprender “a técnica dos computadores”.
O meu problema foi, sempre, a vetusta Parker de tampa lacada; com a caneta vinha, também, o tinteiro recarregável (a velha papelaria de Viana do Castelo continua a providenciar-me a tinta Waterman de há quarenta anos), o mata-borrão e as folhas de papel que já estão fora de moda. Eu aprendi a escrever em folhas de papel almaço com dobra na margem esquerda. A minha pena tinha aparos para susbstituir todas as quinzenas. As folhas de mata-borrão eram cor-de-rosa e cabiam numa pasta que se guardava numa escrivaninha. O meu mundo prolongava-se em objectos que anunciavam a sobrevivência dos regimes, as raízes da família, a memória da velha caligrafia em que as vogais eram redondas e uma ligeira inclinação da letra significava estilo, carácter, elevação e afeição à escrita. Com o tinteiro, a caneta, o mata-borrão, a folha de rascunho e um sem-número de cuidados, vinham também os lápis afiados, as tiras de papel para anotações e uma velocidade e ritmo moderados. Cada momento de escrita tinha o seu código próprio; tinta preta para a epistolografia, azul para assinaturas de documentos, nada mais. Esse mundo terminou. Os meus sobrinhos-netos escrevem tudo no computador. A memória deixou de ser papel e é agora um fragmento de sílica.
in Domingo - Correio da Manhã - 19 Julho 2009
Quando, há dez anos, iniciei as minhas desventuras como cronista eu tinha dificuldade em encarar a palavra “fax”. Eu escrevia em folhas brancas, imaculadas, que depois D. Elaine (a governanta deste eremitério de Moledo) transportava até à estação de correios para serem enviadas por fax. A caneta Parker, herdada do velho Doutor Homem, meu pai, e que servira para celebrar o seu contrato de casamento com Dona Ester, minha mãe, acompanha-me desde então como a fiel pluma que alimenta a vaidade de um velho.
A minha sobrinha Maria Luísa pensou, na época, em instalar um aparelho de fax em casa, ao canto da biblioteca. Fê-lo apesar dos meus protestos sem entusiasmo – no fundo, eu apreciava a “era da velocidade”. Periodicamente, ao fim-de-semana, transportava consigo um computador para onde copiava diligentemente os meus textos, terminando a operação com um clic e um estalinho nos dedos, anunciando que “a crónica já foi”, como se a Internet tivesse nascido no mesmo dia em que aprendeu a juntar letras. Ela nutria alguma ternura pela minha letra de antigo advogado, mas sopesava os argumentos e achava-me capaz de aprender “a técnica dos computadores”.
O meu problema foi, sempre, a vetusta Parker de tampa lacada; com a caneta vinha, também, o tinteiro recarregável (a velha papelaria de Viana do Castelo continua a providenciar-me a tinta Waterman de há quarenta anos), o mata-borrão e as folhas de papel que já estão fora de moda. Eu aprendi a escrever em folhas de papel almaço com dobra na margem esquerda. A minha pena tinha aparos para susbstituir todas as quinzenas. As folhas de mata-borrão eram cor-de-rosa e cabiam numa pasta que se guardava numa escrivaninha. O meu mundo prolongava-se em objectos que anunciavam a sobrevivência dos regimes, as raízes da família, a memória da velha caligrafia em que as vogais eram redondas e uma ligeira inclinação da letra significava estilo, carácter, elevação e afeição à escrita. Com o tinteiro, a caneta, o mata-borrão, a folha de rascunho e um sem-número de cuidados, vinham também os lápis afiados, as tiras de papel para anotações e uma velocidade e ritmo moderados. Cada momento de escrita tinha o seu código próprio; tinta preta para a epistolografia, azul para assinaturas de documentos, nada mais. Esse mundo terminou. Os meus sobrinhos-netos escrevem tudo no computador. A memória deixou de ser papel e é agora um fragmento de sílica.
in Domingo - Correio da Manhã - 19 Julho 2009
<< Home