Retratos e jardins
Escrevi com lápis durante muitos anos. Ainda guardo alguns, afiados, desiguais e gastos pelo tempo e por papel sofrível. As coisas simples como os lápis comovem-me e divertem-me, porque desconheço como se perpetuaram na minha memória e na espécie de armazém em que se foi transformando a biblioteca - onde, além dos livros que fui juntando e escolhendo com egoísmo e dos que herdei do velho doutor Homem (meu pai), se foram acumulando coisas inúteis e desvalorizadas com a idade. Na verdade, como me sugeriu um dos meus irmãos, a transformação da biblioteca da casa de Moledo numa espécie de museu pessoal deve-se, antes de mais, ao medo. O medo, ao contrario do que se pensa, é um bem precioso e inalienável e eu devo-lhe parte da minha memória. Não fosse o medo de perder a memória e não teria reunido fotografias, documentos das conservatórias, cartas, malas de viagem, sabonetes Ach Britto, mapas, exemplares inúteis de 'O Minho Pittoresco' e uma boa cópia da 'Corografia Portugueza' do Padre Carvalho da Costa ou o 'Diccionario Chorographico' de Américo Costa.
Não tenho razoes especiais para conservar a memória, evidentemente, mas ver-me privado dela é também ver-me privado do meu mundo ou, pelo menos, daquilo que pereceu nos últimos trinta anos - na verdade, são uma e a mesma coisa. O meu mundo desapareceu nestas três últimas décadas. Nao o lamente o leitor: bem vistas as coisas, esse mundo não tem grande utilidade. Era um mundo onde a pasta dentífrica se espremia pelo fundo do tubo e onde os jornais não tinham erros nas secções de palavras cruzadas. O resto, a política, a bondade ou a crueldade dos homens, a vaidade ou a riqueza, o prazer ou o sofrimento são menos do que acontecimentos; a única coisa que aprendemos é que precisamos de alguma inteligência para não nos zangarmos com o mundo.
De vez em quando, por isso, recolho-me à minha ocupação principal, a de jardineiro. A minha sobrinha Maria Luísa entende que sou um botânico amador e que devia publicar os meus apontamentos sobre as plantas que conservo em redor da casa. Ela não distingue hibiscos, begónias, japoneiras, magnólias, miosótis ou simples flores das giestas amarelas, mas entende que há um mistério na actividade do botânico e tem-me como um deles. Não sou. Limito-me a anotar o crescimento das plantas e a proibir Dona Elaine (que considera que todas as árvores com flores são camélias ou mimosas), a governanta da casa, de cortar ramos de flores antes do tempo. Algumas delas lembram-lhe o Brasil, de onde veio viúva e remediada, e dão-lhe a fugaz impressão de, quando chega o Verão, estar a dois passos dos trópicos. A minha irmã mais nova, que é também a mais moderna de todos nós, pensa que eu devia aprender alguma coisa de 'feng shui' para que o pobre jardim, protegido pelas altas agulhas dos pinheiros, não Ihe pareça uma selva organizada por um bárbaro. Foi uma grande luta até eu aprender o significado exacto de 'feng shui', uma ciência delicada e oriental que acha que existem energias próprias na arrumação dos objectos domésticos.
Com a minha idade, as artes decorativas são um mistério e a casa de Moledo não suportaria que Ihe mudassem os móveis, as plantas do jardim e da varanda ou os vasos da entrada: são algumas décadas de vícios e de memória. Os Homem são pouco corajosos quando se trata de fazer mudanças.Só assim se explica que ao fundo do grande corredor do casarão de Ponte de Lima, onde os Homem assinalam a sua existência e contam o número dos vivos durante um almoço anual (em Agosto), permaneça, inamovível, uma copia do velho retrato do senhor Dom Miguel. O velho doutor Homem (meu pai) nunca permitiu que se Ihe mudasse o lugar, nem quando veio a democracia. Argumentou que, daquele lugar, o príncipe podia ver melhor os teixos e chorões no meio da relva. Quando um de nós murmurou qualquer coisa sobre os novos tempos da política, limitou-se a dizer que nenhum eventual hóspede saberia dizer se o retrato era do senhor Dom Miguel, de um antepassado austríaco ou de um bibliotecário de Coimbra. Como sempre, ele tinha razão.
in Revista Notícias Sábado - 4 Março 2006
Não tenho razoes especiais para conservar a memória, evidentemente, mas ver-me privado dela é também ver-me privado do meu mundo ou, pelo menos, daquilo que pereceu nos últimos trinta anos - na verdade, são uma e a mesma coisa. O meu mundo desapareceu nestas três últimas décadas. Nao o lamente o leitor: bem vistas as coisas, esse mundo não tem grande utilidade. Era um mundo onde a pasta dentífrica se espremia pelo fundo do tubo e onde os jornais não tinham erros nas secções de palavras cruzadas. O resto, a política, a bondade ou a crueldade dos homens, a vaidade ou a riqueza, o prazer ou o sofrimento são menos do que acontecimentos; a única coisa que aprendemos é que precisamos de alguma inteligência para não nos zangarmos com o mundo.
De vez em quando, por isso, recolho-me à minha ocupação principal, a de jardineiro. A minha sobrinha Maria Luísa entende que sou um botânico amador e que devia publicar os meus apontamentos sobre as plantas que conservo em redor da casa. Ela não distingue hibiscos, begónias, japoneiras, magnólias, miosótis ou simples flores das giestas amarelas, mas entende que há um mistério na actividade do botânico e tem-me como um deles. Não sou. Limito-me a anotar o crescimento das plantas e a proibir Dona Elaine (que considera que todas as árvores com flores são camélias ou mimosas), a governanta da casa, de cortar ramos de flores antes do tempo. Algumas delas lembram-lhe o Brasil, de onde veio viúva e remediada, e dão-lhe a fugaz impressão de, quando chega o Verão, estar a dois passos dos trópicos. A minha irmã mais nova, que é também a mais moderna de todos nós, pensa que eu devia aprender alguma coisa de 'feng shui' para que o pobre jardim, protegido pelas altas agulhas dos pinheiros, não Ihe pareça uma selva organizada por um bárbaro. Foi uma grande luta até eu aprender o significado exacto de 'feng shui', uma ciência delicada e oriental que acha que existem energias próprias na arrumação dos objectos domésticos.
Com a minha idade, as artes decorativas são um mistério e a casa de Moledo não suportaria que Ihe mudassem os móveis, as plantas do jardim e da varanda ou os vasos da entrada: são algumas décadas de vícios e de memória. Os Homem são pouco corajosos quando se trata de fazer mudanças.Só assim se explica que ao fundo do grande corredor do casarão de Ponte de Lima, onde os Homem assinalam a sua existência e contam o número dos vivos durante um almoço anual (em Agosto), permaneça, inamovível, uma copia do velho retrato do senhor Dom Miguel. O velho doutor Homem (meu pai) nunca permitiu que se Ihe mudasse o lugar, nem quando veio a democracia. Argumentou que, daquele lugar, o príncipe podia ver melhor os teixos e chorões no meio da relva. Quando um de nós murmurou qualquer coisa sobre os novos tempos da política, limitou-se a dizer que nenhum eventual hóspede saberia dizer se o retrato era do senhor Dom Miguel, de um antepassado austríaco ou de um bibliotecário de Coimbra. Como sempre, ele tinha razão.
in Revista Notícias Sábado - 4 Março 2006
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