A chuva no mar do Minho
Chove sempre que se aproxima o anúncio da Primavera. O leitor sabe que eu não sou romântico, o que se pode levar na conta de deformação literária. Os Homem nunca tiveram uma cartilha para comandar o destino das suas leituras, mas foram suficientemente cuidadosos no que diz respeito às interdições – para que não se desse por elas. Por exemplo, Garrett. São raros os exemplares de Garrett na biblioteca. Há uma questão de gosto, em redor da sua poesia (que é fraca), reconheço, mas os vetustíssimos Homem do século XIX não ligavam muito a literatura e limitaram-se a nunca desculpar o lugar que o antigo aluno do seminário de Angra (onde o tio bispo lhe cedeu alguns autores clássicos) ocupou na vida política de depois da guerra (a que terminou em Evoramonte). Casmurros, sim, e miguelistas, mas não inconsequentes ou relapsos com os setembristas. Eu lamentei essa frieza porque sempre achei as “Viagens” um livro aparentemente razoável, embora em tradução tardia de Sterne, o do “Tristram Shandy”, que inaugurou os tempos modernos cerca de duzentos anos antes de eles chegarem aos salões.
O velho doutor Homem, meu pai, abandonou vários livros a meio argumentando que, não podendo ler uma tradução decente do “Tristram Shandy”, não iria perder o seu tempo com imitações. Ele era, à sua maneira, reconheço, um excêntrico. Não satisfeito com o facto de ter espalhado a fama da sua excentricidade ao longo da vida, conseguiu também impô-la a todos nós, o que o poupou a bastantes dissabores e a alguns incómodos, como ter que assistir a peças de teatro nas noites frias do seu velho Porto, ser assediado para encontros literários ou, mais prosaicamente, acompanhar a educação sentimental dos seus descendentes.
Foi por esse motivo que me lembrei da chuva, que sempre considerei um truque romântico de efeito fácil. A evocação das gotas de chuva caindo sobre as ruas, da sua melancolia portuense e ribeirinha, das tonalidades de cinzento envolvendo as árvores (que já não existem) do Campo de 24 de Agosto, da passagem do vento entre os becos – qualquer romancista usa esses artifícios, e qualquer romântico, dos incorrigíveis aos lamentáveis, gosta de evocações depressivas. O leitor dos livros de Dona Agustina raramente encontrará essa chuva nas suas páginas, pardacenta e caindo com estilo. A chuva é a chuva; trata-se de uma questão que apenas diz respeito à limpeza das ruas, à meteorologia e às hortas.
A verdade é que fico assim quando chegam os primeiros alvores da Primavera. Há um brilho do mar à beira de Moledo. A crónica da província é feita de coisas insignificantes e de memórias das estações do ano, do ruído das motorizadas no final da tarde de domingo. Para entender esta desinteressante monotonia é preciso compreender como a província ficou abandonada. Reparo nisso quando regresso dos cumes de Santa Tecla, onde vamos uma vez por ano, depois de almoçar em Cerveira e de conferir que o rio segue o mesmo curso de sempre. Naquelas colinas que se afundam no mar do meu Minho vejo despontar a primeira luz verdadeira da temporada. Antigamente costumava vê-la nas mimosas que cresciam à beira da estrada de Viana ou nas ruínas de uma certa casa de Afife, onde se instalara um tio que emigrara e viera rico do Pernambuco. Também ele era um romântico e um liberal. Na sua modesta e cívica educação literária, afeiçoada a muitos anos de maçonaria do Pernambuco, cabiam todos os lugares-comuns que a alma humana era capaz de engendrar. Republicano como era, o tio da ala esquerda da família acreditava que a poesia, como a literatura em geral, tinha como missão contribuir para a melhoria do carácter dos seus leitores. O pobre homem acreditava que Guerra Junqueiro era um poeta de génio e tentou várias vezes recitar-nos “O Melro” para nos incutir virtudes gramaticais ou para nos educar um gosto literário triturado por muito cepticismo e versos em línguas estrangeiras. Todos nós sabíamos que a literatura não tinha nada a ver com as virtudes cívicas. Tal como o sentimento não tem a ver com as condições meteorológicas. É por isso que chove de vez em quando, anunciando a Primavera.
in Revista Notícias Sábado -11 Março 2006
O velho doutor Homem, meu pai, abandonou vários livros a meio argumentando que, não podendo ler uma tradução decente do “Tristram Shandy”, não iria perder o seu tempo com imitações. Ele era, à sua maneira, reconheço, um excêntrico. Não satisfeito com o facto de ter espalhado a fama da sua excentricidade ao longo da vida, conseguiu também impô-la a todos nós, o que o poupou a bastantes dissabores e a alguns incómodos, como ter que assistir a peças de teatro nas noites frias do seu velho Porto, ser assediado para encontros literários ou, mais prosaicamente, acompanhar a educação sentimental dos seus descendentes.
Foi por esse motivo que me lembrei da chuva, que sempre considerei um truque romântico de efeito fácil. A evocação das gotas de chuva caindo sobre as ruas, da sua melancolia portuense e ribeirinha, das tonalidades de cinzento envolvendo as árvores (que já não existem) do Campo de 24 de Agosto, da passagem do vento entre os becos – qualquer romancista usa esses artifícios, e qualquer romântico, dos incorrigíveis aos lamentáveis, gosta de evocações depressivas. O leitor dos livros de Dona Agustina raramente encontrará essa chuva nas suas páginas, pardacenta e caindo com estilo. A chuva é a chuva; trata-se de uma questão que apenas diz respeito à limpeza das ruas, à meteorologia e às hortas.
A verdade é que fico assim quando chegam os primeiros alvores da Primavera. Há um brilho do mar à beira de Moledo. A crónica da província é feita de coisas insignificantes e de memórias das estações do ano, do ruído das motorizadas no final da tarde de domingo. Para entender esta desinteressante monotonia é preciso compreender como a província ficou abandonada. Reparo nisso quando regresso dos cumes de Santa Tecla, onde vamos uma vez por ano, depois de almoçar em Cerveira e de conferir que o rio segue o mesmo curso de sempre. Naquelas colinas que se afundam no mar do meu Minho vejo despontar a primeira luz verdadeira da temporada. Antigamente costumava vê-la nas mimosas que cresciam à beira da estrada de Viana ou nas ruínas de uma certa casa de Afife, onde se instalara um tio que emigrara e viera rico do Pernambuco. Também ele era um romântico e um liberal. Na sua modesta e cívica educação literária, afeiçoada a muitos anos de maçonaria do Pernambuco, cabiam todos os lugares-comuns que a alma humana era capaz de engendrar. Republicano como era, o tio da ala esquerda da família acreditava que a poesia, como a literatura em geral, tinha como missão contribuir para a melhoria do carácter dos seus leitores. O pobre homem acreditava que Guerra Junqueiro era um poeta de génio e tentou várias vezes recitar-nos “O Melro” para nos incutir virtudes gramaticais ou para nos educar um gosto literário triturado por muito cepticismo e versos em línguas estrangeiras. Todos nós sabíamos que a literatura não tinha nada a ver com as virtudes cívicas. Tal como o sentimento não tem a ver com as condições meteorológicas. É por isso que chove de vez em quando, anunciando a Primavera.
in Revista Notícias Sábado -11 Março 2006
<< Home