À espera do iodo
Os derradeiros dias de Fevereiro nem são simpáticos nem antipáticos – é apenas o Entrudo. Essa constatação devia deixar-me prostrado porque geralmente chove durante o Entrudo, e há uma ventania gelada, como se fosse uma espécie de castigo pela própria natureza da época. As sociedades civilizadas têm períodos assim, desregrados e não especialmente agradáveis, em que as multidões entram em desvario e festejam por obrigação. Como um Matusalém minhoto, que é essa a minha categoria, já não me recordo sobre o que se festeja no Entrudo, a que hoje se chama Carnaval.
O velho doutor Homem, meu pai, fechava-se em casa para não ser testemunha de cortejos de foliões e dessa fealdade fria que ameaçava Fevereiro com o seu rasto inclemente de canções brasileiras e de partidinhas entre vizinhos ou desconhecidos. Nesses dias, recolhia-se à biblioteca e deixava que os filhos se comportassem como selvagens. O que seria para ele um descanso óbvio, uma prova de que “o mundo é como é”, acabava por não acontecer – a maioria de nós, creio que por motivos inscritos na genética, não se dispunha a ceder ao barbarismo. Foi nessa altura da minha adolescência que, num Verão de circunstância, a casa de Moledo passou a fazer parte dos nossos roteiros familiares.
Os meus irmãos insistem no facto de eu não ter atravessado a adolescência (uma vez que teria passado da primeira infância à idade adulta e ao escritório onde trabalhei durante cinquenta e cinco anos), mas reconhecem a importância da casa de Moledo para a nossa existência colectiva. De certa maneira, ela era uma alternativa ao velho casarão de Ponte de Lima, onde se tinham acumulado as memórias dos vários ramos dos Homem, juntamente com as peças da Companhia das Índias pertencentes outrora à tia Benedita e os enxovais desperdiçados em vários casamentos intra muros. Se em Ponte de Lima se comemorava o Verão mais afastado do bulício, entre as montanhas e o rio, escorrendo pelos velhos freixos e choupos do jardim, Moledo era a apoteose do iodo.
Nessa altura, e creio que até há coisa de vinte anos, murmurava-se muito sobre o iodo. O velho doutor Homem, meu pai, insistia que o melhor iodo era o do Estoril ou o de Biarritz, onde havia menos probabilidade de encontrar o seu país, cheio de reumatismo, doenças pulmonares, asma ou bronquites crónicas. O iodo era o remédio universal, como hoje são as pílulas para dormir ou o futebol ao fim-de-semana. Moledo enchia-se, então, de famílias cobertas de mantas e cobertores discretos, recebendo, nas manhãs de Verão, a ainda mais discreta bênção do iodo, aspirando pelas narinas aquela consolação feita de sargaço, água salgada, areia suja de algas e a visão dos rochedos e da Ínsua. Antes da abertura do Verão, que tinha data marcada e não era esta época desordenada que vai de Maio a Outubro, havia a preparação para o iodo: passeios ao sol, ao longo a praia, entre os pinhais, em bandos de gente saudável. Poupo o leitor a essa descrição de retratos de época. Basta imaginar.
Com o tempo descobriu-se que o iodo tinha os seus problemas. Os Homem das novas gerações preferiram-lhe o sol e o bronzeado. Já que me tinha faltado a oportunidade e a fé para contrair um casamento e seguir as pisadas da família inteira (que tem multiplicado casamentos com notável eficácia e entusiasmo), dediquei-me a ser um tio deplorável, alimentando nos meus sobrinhos a ideia de que o mar é um contributo inegável para a nossa saúde. Eu fui saudável durante muitos anos, de facto. Devo-o, estou hoje convencido, ao mar. Não ao mar que hoje se procura e se oferece nas Caraíbas e nas antigas províncias de África, mas ao mar rijo, frio e ondulado de Moledo. Mantenho com o iodo uma relação afectuosa: ambos sabemos que nenhum de nós existe verdadeiramente. Eu limito-me a esperar que passe o Entrudo e a sua vaga de frio para que a praia fique apetecível para as tardes da Páscoa; o iodo aguarda a legião de narinas despertas para aquela saudável aspersão de odores salgados. Somos apenas isso: duas velharias esperando uma pela outra. Na semana anterior, a praia (e os bares que a servem de clientela) encheu-se de gente em passeio. Vislumbrei nesse quadro aquele apetite ancestral pelo iodo e o combate permanente ao reumatismo. Nestas circunstâncias, o velho doutor Homem (meu pai) murmurava sobre como devia estar formoso o mar de Biarritz. Era um romântico incurável que nunca percebeu que Moledo era, na verdade, o centro do mundo.
in Revista Notícias Sábado - 25 Fevereiro 2006
O velho doutor Homem, meu pai, fechava-se em casa para não ser testemunha de cortejos de foliões e dessa fealdade fria que ameaçava Fevereiro com o seu rasto inclemente de canções brasileiras e de partidinhas entre vizinhos ou desconhecidos. Nesses dias, recolhia-se à biblioteca e deixava que os filhos se comportassem como selvagens. O que seria para ele um descanso óbvio, uma prova de que “o mundo é como é”, acabava por não acontecer – a maioria de nós, creio que por motivos inscritos na genética, não se dispunha a ceder ao barbarismo. Foi nessa altura da minha adolescência que, num Verão de circunstância, a casa de Moledo passou a fazer parte dos nossos roteiros familiares.
Os meus irmãos insistem no facto de eu não ter atravessado a adolescência (uma vez que teria passado da primeira infância à idade adulta e ao escritório onde trabalhei durante cinquenta e cinco anos), mas reconhecem a importância da casa de Moledo para a nossa existência colectiva. De certa maneira, ela era uma alternativa ao velho casarão de Ponte de Lima, onde se tinham acumulado as memórias dos vários ramos dos Homem, juntamente com as peças da Companhia das Índias pertencentes outrora à tia Benedita e os enxovais desperdiçados em vários casamentos intra muros. Se em Ponte de Lima se comemorava o Verão mais afastado do bulício, entre as montanhas e o rio, escorrendo pelos velhos freixos e choupos do jardim, Moledo era a apoteose do iodo.
Nessa altura, e creio que até há coisa de vinte anos, murmurava-se muito sobre o iodo. O velho doutor Homem, meu pai, insistia que o melhor iodo era o do Estoril ou o de Biarritz, onde havia menos probabilidade de encontrar o seu país, cheio de reumatismo, doenças pulmonares, asma ou bronquites crónicas. O iodo era o remédio universal, como hoje são as pílulas para dormir ou o futebol ao fim-de-semana. Moledo enchia-se, então, de famílias cobertas de mantas e cobertores discretos, recebendo, nas manhãs de Verão, a ainda mais discreta bênção do iodo, aspirando pelas narinas aquela consolação feita de sargaço, água salgada, areia suja de algas e a visão dos rochedos e da Ínsua. Antes da abertura do Verão, que tinha data marcada e não era esta época desordenada que vai de Maio a Outubro, havia a preparação para o iodo: passeios ao sol, ao longo a praia, entre os pinhais, em bandos de gente saudável. Poupo o leitor a essa descrição de retratos de época. Basta imaginar.
Com o tempo descobriu-se que o iodo tinha os seus problemas. Os Homem das novas gerações preferiram-lhe o sol e o bronzeado. Já que me tinha faltado a oportunidade e a fé para contrair um casamento e seguir as pisadas da família inteira (que tem multiplicado casamentos com notável eficácia e entusiasmo), dediquei-me a ser um tio deplorável, alimentando nos meus sobrinhos a ideia de que o mar é um contributo inegável para a nossa saúde. Eu fui saudável durante muitos anos, de facto. Devo-o, estou hoje convencido, ao mar. Não ao mar que hoje se procura e se oferece nas Caraíbas e nas antigas províncias de África, mas ao mar rijo, frio e ondulado de Moledo. Mantenho com o iodo uma relação afectuosa: ambos sabemos que nenhum de nós existe verdadeiramente. Eu limito-me a esperar que passe o Entrudo e a sua vaga de frio para que a praia fique apetecível para as tardes da Páscoa; o iodo aguarda a legião de narinas despertas para aquela saudável aspersão de odores salgados. Somos apenas isso: duas velharias esperando uma pela outra. Na semana anterior, a praia (e os bares que a servem de clientela) encheu-se de gente em passeio. Vislumbrei nesse quadro aquele apetite ancestral pelo iodo e o combate permanente ao reumatismo. Nestas circunstâncias, o velho doutor Homem (meu pai) murmurava sobre como devia estar formoso o mar de Biarritz. Era um romântico incurável que nunca percebeu que Moledo era, na verdade, o centro do mundo.
in Revista Notícias Sábado - 25 Fevereiro 2006
<< Home