A idade das viagens
O velho doutor Homem, meu pai, não foi à Primeira Guerra e a Segunda não lhe dizia respeito. No entanto, especializou-se em estratégia militar e divulgou bastante o uso de mapas da Europa dentro das paredes da velha casa da família, naquilo que então era a Baixa do Porto. Havia mapas de toda a espécie, mas grande parte deles vinha de Inglaterra. Sobre eles se debruçavam os dois, meu pai e meu avô, para explicar à família onde ficava o Marne ou qual o percurso dos aviões alemães que entravam em solo britânico para bombardear Londres. De qualquer modo, a palavra "blitz" não entrou logo no nosso dicionário, e os nomes de então eram ligeiramente aportuguesados. Nesses tempos em que Oxford era Oxónia e Cambridge passava por ser Cambrígia, os mapas eram um bem precioso, irregular e ligeiramente inútil, porque ninguém precisava de mapas para poder guiar-se por eles. Simplesmente, porque ninguém viajava.
A primeira vez que um mapa foi disputado pelos membros da família ocorreu nessa viagem distante e tormentosa, quando o doutor Homem, meu pai, decidiu que Biarritz era melhor do que Leça ou que Nice estava muito para lá do Tamariz. Isso aconteceu depois da Guerra e mesmo assim foi difícil convencer-nos de que aquele complexo de montanhas, declives, desertos, planícies rasuradas e aldeias pobres, era Espanha. Nem Calatayud nem Talavera de La Reyna vinham assinaladas no único mapa peninsular do nosso pequeno e familiar arquivo cartográfico (Calatayud por causa de uma canção ligeira que foi famosa na altura), e passar em Toledo implicava um enorme gasto de energia útil para que ouvíssemos uma oração de sapiência acerca de El Greco.
Mesmo assim, viajar com o doutor Homem, meu pai, era uma oportunidade vistosa para entrar em hotéis onde tratavam como família um grupo de desordeiros portugueses, e para conhecer restaurantes famosos numa época em que não havia Guia Michelin, mas nos era exigida compostura e pedida abertura de espírito. Por esta ordem, exactamente – porque não havia abertura de espírito possível sem a educação para conhecer o sabor dos espargos franceses. Outros tempos.
Com o tempo, viajar tornou-se mais apetecível, e sem ter de atravessar as "aduanas" e aquele desfile de carabineiros coroados pelo tricórnio da Guardia Civil espanhola. Lembro-me da chegada ao Rio de Janeiro, na época de Juscelino Kubitschek, quando Copacabana era uma galeria de actrizes e de gente famosa e bastante morena. Da primeira de várias visitas a Paris, com a família saindo em fila indiana de um hotel. E dos mármores vistosos de Santa Maria Novella, em Florença, na altura em que eu vesti o meu primeiro fato à Marcello Mastroianni.
A minha sobrinha ri-se bastante destas memórias e pergunta-me se eu me lembro de Maria Callas. Para ela, eu sou um repositório dos tempos do Titanic, como se tivesse encalhado nas areias de Moledo para minha glória pessoal. Da biblioteca à enumeração de caos em que se foi transformando a minha memória, ela crê encontrar material para paleontologia. "Vamos então fazer uma viagem?", perguntou ela na semana passada. Eu ri-me. A minha idade só me permite deslocações a Viana do Castelo para ver e ser visto pelo médico (que é um optimista sem cura), e a Vila Nova de Cerveira para ver as colinas de Santa Tecla. À medida que o tempo passa e a memória se dilui, prefiro de verdade a praça central de Cerveira (ou de Caminha) a deambular pela época em que os Campos Elíseos eram uma imagem de luxo e de sonho. E fomos até Vila Nova de Cerveira em peregrinação, no carro que precisava de reconhecer a velha estrada do meu Minho ribeirinho, de passar por Caminha e de chegar a Cerveira. Agora há auto-estradas modernas que furam as montanhas que ficam por arder. Algumas delas conservam aquele verde intenso que reanima o final do Inverno e me anuncia que o mundo continua. Não era preciso ter vindo a Cerveira para descobrir que existe a outra margem do rio, mas a verdade é que facilita muito. São coisas de velho, o que não abona muito a favor da minha sobrinha. Ela só lê estas crónicas ao domingo. Ainda terei um dia inteiro para me preparar.
in Revista Notícias Sábado -18 Março 2006
A primeira vez que um mapa foi disputado pelos membros da família ocorreu nessa viagem distante e tormentosa, quando o doutor Homem, meu pai, decidiu que Biarritz era melhor do que Leça ou que Nice estava muito para lá do Tamariz. Isso aconteceu depois da Guerra e mesmo assim foi difícil convencer-nos de que aquele complexo de montanhas, declives, desertos, planícies rasuradas e aldeias pobres, era Espanha. Nem Calatayud nem Talavera de La Reyna vinham assinaladas no único mapa peninsular do nosso pequeno e familiar arquivo cartográfico (Calatayud por causa de uma canção ligeira que foi famosa na altura), e passar em Toledo implicava um enorme gasto de energia útil para que ouvíssemos uma oração de sapiência acerca de El Greco.
Mesmo assim, viajar com o doutor Homem, meu pai, era uma oportunidade vistosa para entrar em hotéis onde tratavam como família um grupo de desordeiros portugueses, e para conhecer restaurantes famosos numa época em que não havia Guia Michelin, mas nos era exigida compostura e pedida abertura de espírito. Por esta ordem, exactamente – porque não havia abertura de espírito possível sem a educação para conhecer o sabor dos espargos franceses. Outros tempos.
Com o tempo, viajar tornou-se mais apetecível, e sem ter de atravessar as "aduanas" e aquele desfile de carabineiros coroados pelo tricórnio da Guardia Civil espanhola. Lembro-me da chegada ao Rio de Janeiro, na época de Juscelino Kubitschek, quando Copacabana era uma galeria de actrizes e de gente famosa e bastante morena. Da primeira de várias visitas a Paris, com a família saindo em fila indiana de um hotel. E dos mármores vistosos de Santa Maria Novella, em Florença, na altura em que eu vesti o meu primeiro fato à Marcello Mastroianni.
A minha sobrinha ri-se bastante destas memórias e pergunta-me se eu me lembro de Maria Callas. Para ela, eu sou um repositório dos tempos do Titanic, como se tivesse encalhado nas areias de Moledo para minha glória pessoal. Da biblioteca à enumeração de caos em que se foi transformando a minha memória, ela crê encontrar material para paleontologia. "Vamos então fazer uma viagem?", perguntou ela na semana passada. Eu ri-me. A minha idade só me permite deslocações a Viana do Castelo para ver e ser visto pelo médico (que é um optimista sem cura), e a Vila Nova de Cerveira para ver as colinas de Santa Tecla. À medida que o tempo passa e a memória se dilui, prefiro de verdade a praça central de Cerveira (ou de Caminha) a deambular pela época em que os Campos Elíseos eram uma imagem de luxo e de sonho. E fomos até Vila Nova de Cerveira em peregrinação, no carro que precisava de reconhecer a velha estrada do meu Minho ribeirinho, de passar por Caminha e de chegar a Cerveira. Agora há auto-estradas modernas que furam as montanhas que ficam por arder. Algumas delas conservam aquele verde intenso que reanima o final do Inverno e me anuncia que o mundo continua. Não era preciso ter vindo a Cerveira para descobrir que existe a outra margem do rio, mas a verdade é que facilita muito. São coisas de velho, o que não abona muito a favor da minha sobrinha. Ela só lê estas crónicas ao domingo. Ainda terei um dia inteiro para me preparar.
in Revista Notícias Sábado -18 Março 2006
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