A um Deus desconhecido
Que eu saiba, os assuntos que versam matéria religiosa foram sempre vetados pelos Homem. A tia-avó Benedita acreditava que o espírito do doutor Afonso Costa havia de regressar, da Beira ou de Paris, para expulsar os missionários franciscanos ou para roubar o ouro dos paços episcopais e dos conventos. Nos últimos jantares de Natal e almoços de Páscoa com que se pontuavam os ciclos de vida da família, a matriarca erguia o dedo para lembrar os horrores da República, da Maçonaria e dos carbonários. A religião da tia Benedita, bem vistas as coisas, era o resultado de uma estranha devoção ao senhor Cardeal Cerejeira, de uma tradição reaccionária que o ramo mais miguelista da família (o maioritário, de resto) mantinha com serenidade, e de uma necessidade de metafísica que se manifestava em datas exactas e precisas – o nascimento de Cristo, a Quaresma, o ciclo do Advento – ou em circunstâncias flutuantes – a exigência de limites. Ela não conhecia Dostoievsky, mas administrava o terror com generosidade. Para ela, Francisco Xavier era um santo e os “doutores da lei” deviam ser uma excrescência.
Eu e os meus cinco irmãos e irmãs recebemos uma educação religiosa que fazia prever o que aí vinha: os Homem a transformarem-se em “tolerantes”. O velho doutor Homem (meu pai) compreendeu a tempo que não havia vida decente sem religião, temor e uma biblioteca duvidosa; tratou de educar-nos, de forma evidentemente desigual, no respeito pela religião, no temor das catástrofes e no amor pelos livros. A ele cabia esse divertimento; ao ramo feminino era atribuído tudo o resto, que ia da educação fundamental à vistoria das mãos lavadas (com sabonete Confiança) antes de nos sentarmos à mesa. Daí resultou que alguns de nós se perderam na contemplação do jazz (sobretudo de Coleman Hawkings and the Trumpet Kings) e das cantoras líricas mais atrevidas durante as saudosas tardes de Verão na velha casa de Ponte de Lima, enquanto outros optaram pela carreira dos negócios e pelo voto no professor Cavaco. As duas coisas não são incompatíveis, mas o desenho é este. O leitor, habituado a ver o mundo dividido entre bons e maus, há-de compreender melhor assim.
De modo que a religião era, tal como as férias, o pudim do Abade de Priscos e a literatura romântica, servida com parcimónia e a cada um segundo as suas necessidades. É verdade que houve, a partir de certa altura, uma tendência anticlerical na nossa família, sobretudo quando os velhos padres do Minho foram sendo substituídos por seminaristas formados depois da invenção da pílula e da abertura de escolas para ambos os sexos. O velho doutor Homem (meu pai) não é desse tempo; sobreviveu-lhe e passou ao lado, depois de uma vida inteira dedicada à família, à leitura da imprensa e à catalogação da biblioteca. No velho Porto de antanho, a torre dos Clérigos ou os sinos da Sé faziam parte da paisagem como o velho edifício de “O Comércio do Porto” e a mesa que o doutor Pedro Homem de Mello ocupava na A Brasileira – mas não eram matéria religiosa. A nossa casa era visitada por dois cónegos do Cabido que traziam guarda-chuvas no braço e que riam à mesa com apetite e alegria – mas também eles não eram matéria religiosa, que ficava com cada um. Há nisso uma recordação fugaz que o leitor compreenderia melhor se pudesse consultar a lista dos inquiridos pelo Santo Ofício e procurasse o patronímico dos Homem. Lá estará. Mas nem isso impediu o velho doutor Homem (meu pai), ou os seus antepassados, de tolerar a velha Igreja. São coisas passadas.
Não sei o que pensaria a Tia Benedita dos desenhos que o jornal dinamarquês publicou sobre o profeta Maomé, mas certamente seria tolerante. Ela estava em guerra permanente pela Terra Santa, o que era um despropósito. Mas não toleraria anedotas mais velhas do que Gil Vicente sobre o comportamento dos frades e o humor dos bons santos. Ela nunca acreditou que São Tomás de Aquino era um gastrónomo e que Santa Teresa de Ávila andou à beira da perdição. À sua maneira era uma santa que viveu em santidade. Ela apreciaria os mullahs, não fossem as barbas.
in Revista Notícias Sábado - 11 Fevereiro 2006
Eu e os meus cinco irmãos e irmãs recebemos uma educação religiosa que fazia prever o que aí vinha: os Homem a transformarem-se em “tolerantes”. O velho doutor Homem (meu pai) compreendeu a tempo que não havia vida decente sem religião, temor e uma biblioteca duvidosa; tratou de educar-nos, de forma evidentemente desigual, no respeito pela religião, no temor das catástrofes e no amor pelos livros. A ele cabia esse divertimento; ao ramo feminino era atribuído tudo o resto, que ia da educação fundamental à vistoria das mãos lavadas (com sabonete Confiança) antes de nos sentarmos à mesa. Daí resultou que alguns de nós se perderam na contemplação do jazz (sobretudo de Coleman Hawkings and the Trumpet Kings) e das cantoras líricas mais atrevidas durante as saudosas tardes de Verão na velha casa de Ponte de Lima, enquanto outros optaram pela carreira dos negócios e pelo voto no professor Cavaco. As duas coisas não são incompatíveis, mas o desenho é este. O leitor, habituado a ver o mundo dividido entre bons e maus, há-de compreender melhor assim.
De modo que a religião era, tal como as férias, o pudim do Abade de Priscos e a literatura romântica, servida com parcimónia e a cada um segundo as suas necessidades. É verdade que houve, a partir de certa altura, uma tendência anticlerical na nossa família, sobretudo quando os velhos padres do Minho foram sendo substituídos por seminaristas formados depois da invenção da pílula e da abertura de escolas para ambos os sexos. O velho doutor Homem (meu pai) não é desse tempo; sobreviveu-lhe e passou ao lado, depois de uma vida inteira dedicada à família, à leitura da imprensa e à catalogação da biblioteca. No velho Porto de antanho, a torre dos Clérigos ou os sinos da Sé faziam parte da paisagem como o velho edifício de “O Comércio do Porto” e a mesa que o doutor Pedro Homem de Mello ocupava na A Brasileira – mas não eram matéria religiosa. A nossa casa era visitada por dois cónegos do Cabido que traziam guarda-chuvas no braço e que riam à mesa com apetite e alegria – mas também eles não eram matéria religiosa, que ficava com cada um. Há nisso uma recordação fugaz que o leitor compreenderia melhor se pudesse consultar a lista dos inquiridos pelo Santo Ofício e procurasse o patronímico dos Homem. Lá estará. Mas nem isso impediu o velho doutor Homem (meu pai), ou os seus antepassados, de tolerar a velha Igreja. São coisas passadas.
Não sei o que pensaria a Tia Benedita dos desenhos que o jornal dinamarquês publicou sobre o profeta Maomé, mas certamente seria tolerante. Ela estava em guerra permanente pela Terra Santa, o que era um despropósito. Mas não toleraria anedotas mais velhas do que Gil Vicente sobre o comportamento dos frades e o humor dos bons santos. Ela nunca acreditou que São Tomás de Aquino era um gastrónomo e que Santa Teresa de Ávila andou à beira da perdição. À sua maneira era uma santa que viveu em santidade. Ela apreciaria os mullahs, não fossem as barbas.
in Revista Notícias Sábado - 11 Fevereiro 2006
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