Três temas essenciais
O velho doutor Homem (meu pai), que era um português avisado, pediu-me algumas vezes para não discutir três coisas com o meu avô, administrador de quintas do Douro e historiador, por conta própria, dos caminhos-de-ferro Portugueses: religião, a Convenção de Évora Monte e os atrasos no comboio rápido entre Campanha e Barca d'Alva. Se bem que nem as quintas do Douro nem os caminhos-de-ferro fossem coisas suas, ele cuidava de ambas com profissionalismo e pundonor inexplicáveis para os dias de hoje. Nunca quis comprar uma quinta para si (embora pudesse e creio que há, no atabalhoado espólio da casa de Ponte de Lima, uma carta de Guerra Junqueiro mencionando o assunto) e nunca publicou sequer uma pequena monografia sobre a ferrovia nacional. Essa paisagem de antanho, pobre, cheia de homens humildes e rescendendo a flor de giesta e a mosto maduro, sempre o cativou.
Como se diz hoje em dia, tinha uma paixão pelo Douro. Todos o compreendíamos desde que não nos incomodasse muito com a descrição das obras nos vinhedos, com os números da colheita da amêndoa ou com observações acerca do azeite e das suas virtudes. Éramos tolerantes. Acerca dos comboios, eu compreendo a obsessão: varias vezes o fomos esperar a São Bento, recolhendo-o de mais uma viagem às profundezas de Mogadouro ou as falésias do Pinhão ou do Vesúvio, emergindo do interior de carruagens cheias de pó e de cestos do almoço; o comboio era, portanto, uma parte da sua peregrinação mensal às quintas onde apreciava os ciprestes, as vinhas, as cristaleiras das casas, a comida desse tempo, o vinho fino com biscoitos e a conversa com os ingleses que resistiam ao calor, ao frio e à desordem geral do clima. Ele não compreendia os ingleses, de resto, ao contrário do meu pai. Onde o meu avo via a teimosia inexplicável de umas famílias que teimavam em viver no Pinhão ou a beira do Varosa ou do Sabor - onde não acontecia nada de verdadeiramente civilizado, tirando a caça e a epistolografia -, o meu pai descortinava uma biblioteca sorvida em silêncio e a fuga ao mundo do doutor Salazar, que, segundo o meu avô, também era culpado dos atrasos do comboio rápido que raramente o depositava com segurança em Barca d'Alva. A falta de cumprimento dos horários na ferrovia era assunto de melindre.
Quanto às outras coisas, explicam-se. Os Homem guardaram algum ressentimento em relação ao general Azevedo Lemos, que em 1834 assinou pelo exercito do senhor D. Miguel a Convenção de Évora Monte; sem razão alguma, como sabiam, mas cientes de que as famílias deviam manter injustiças sagradas, teimosas e invioláveis. De qualquer modo, por mais de um século que nenhum Homem entrou em Évora e, quando um de nós o fez pela primeira vez (um tio-avô de Vila Nova de Cerveira que, enviuvado, casou com uma senhora do Alvito), certamente que procedeu a uma ligeira genuflexão. Isso aconteceu nos anos sessenta, já o regime tinha autorizado fotografias das augustas e suavíssimas pernas de Christine Gamier (outra obsessão familiar).
Em matéria de religião, e tirando a ortodoxia da tia Benedita - que ia contra o tom geral de decadência do nosso miguelismo -, os Homem respeitavam a preguiça teológica dos seus membros, desde que logo no inicio da Quaresma, pela Páscoa e pelo Natal houvesse sinal da nossa existência como uma família do Velho Porto e do vetusto Minho aos quais pertencíamos - nós, os tapetes e as peças da Companhia das Índias. No entanto, nesse ambiente de alegre emburguesamento, o velho doutor Homem (meu pai) nunca permitiu que alguém metesse o nariz na sua biblioteca, nas assinaturas da imprensa inglesa (que, semanalmente, chegava ao escritório ou a casa) ou na ideia de que o mundo tem um princípio ou um fim. Essa era a sua liberdade e nem Ihe chamava um valor, mas uma condição. Se os 'ayatollahs' quisessem puni-lo, a ele, que achava a religião uma coisa pessoal, como um passaporte ou um único verso de toda a poesia de Yeats, encontrá-lo-iam sentado, à espera, mas do lado de dentro da porta. Ele sabia o que era a liberdade. Sabia o que era o lado de dentro da porta.
in Revista Notícias Sábado - 18 Fevereiro 2006
Como se diz hoje em dia, tinha uma paixão pelo Douro. Todos o compreendíamos desde que não nos incomodasse muito com a descrição das obras nos vinhedos, com os números da colheita da amêndoa ou com observações acerca do azeite e das suas virtudes. Éramos tolerantes. Acerca dos comboios, eu compreendo a obsessão: varias vezes o fomos esperar a São Bento, recolhendo-o de mais uma viagem às profundezas de Mogadouro ou as falésias do Pinhão ou do Vesúvio, emergindo do interior de carruagens cheias de pó e de cestos do almoço; o comboio era, portanto, uma parte da sua peregrinação mensal às quintas onde apreciava os ciprestes, as vinhas, as cristaleiras das casas, a comida desse tempo, o vinho fino com biscoitos e a conversa com os ingleses que resistiam ao calor, ao frio e à desordem geral do clima. Ele não compreendia os ingleses, de resto, ao contrário do meu pai. Onde o meu avo via a teimosia inexplicável de umas famílias que teimavam em viver no Pinhão ou a beira do Varosa ou do Sabor - onde não acontecia nada de verdadeiramente civilizado, tirando a caça e a epistolografia -, o meu pai descortinava uma biblioteca sorvida em silêncio e a fuga ao mundo do doutor Salazar, que, segundo o meu avô, também era culpado dos atrasos do comboio rápido que raramente o depositava com segurança em Barca d'Alva. A falta de cumprimento dos horários na ferrovia era assunto de melindre.
Quanto às outras coisas, explicam-se. Os Homem guardaram algum ressentimento em relação ao general Azevedo Lemos, que em 1834 assinou pelo exercito do senhor D. Miguel a Convenção de Évora Monte; sem razão alguma, como sabiam, mas cientes de que as famílias deviam manter injustiças sagradas, teimosas e invioláveis. De qualquer modo, por mais de um século que nenhum Homem entrou em Évora e, quando um de nós o fez pela primeira vez (um tio-avô de Vila Nova de Cerveira que, enviuvado, casou com uma senhora do Alvito), certamente que procedeu a uma ligeira genuflexão. Isso aconteceu nos anos sessenta, já o regime tinha autorizado fotografias das augustas e suavíssimas pernas de Christine Gamier (outra obsessão familiar).
Em matéria de religião, e tirando a ortodoxia da tia Benedita - que ia contra o tom geral de decadência do nosso miguelismo -, os Homem respeitavam a preguiça teológica dos seus membros, desde que logo no inicio da Quaresma, pela Páscoa e pelo Natal houvesse sinal da nossa existência como uma família do Velho Porto e do vetusto Minho aos quais pertencíamos - nós, os tapetes e as peças da Companhia das Índias. No entanto, nesse ambiente de alegre emburguesamento, o velho doutor Homem (meu pai) nunca permitiu que alguém metesse o nariz na sua biblioteca, nas assinaturas da imprensa inglesa (que, semanalmente, chegava ao escritório ou a casa) ou na ideia de que o mundo tem um princípio ou um fim. Essa era a sua liberdade e nem Ihe chamava um valor, mas uma condição. Se os 'ayatollahs' quisessem puni-lo, a ele, que achava a religião uma coisa pessoal, como um passaporte ou um único verso de toda a poesia de Yeats, encontrá-lo-iam sentado, à espera, mas do lado de dentro da porta. Ele sabia o que era a liberdade. Sabia o que era o lado de dentro da porta.
in Revista Notícias Sábado - 18 Fevereiro 2006
<< Home