As contrariedades da mudança
Uma das discussões periódicas na velha casa de Moledo, com uma repetição quase mensal nos últimos tempos, acontece quando as minhas duas irmãs decidem cuidar da decoração dos aposentos do Matusalém. Eu sou o Matusalém e uma delas adverte-me: «Não julgue que queremos mandar na sua casa, António. Mas isto precisa de mudança.»
Eu sei. Ninguém de bom senso se atreve a mandar nesta casa. Na verdade, quem manda nesta casa é Dona Elaine, a governanta que há vinte anos cuida da despensa, da cozinha e das férias de Verão deste eremitério (de Julho a Setembro a casa é invadida por hordas de rapazes e raparigas de que lembro vagamente o nome, mas que vêm com os meus sobrinhos). Filha de emigrantes portugueses que fizeram a vida no Rio de Janeiro, Dona Elaine voltou viúva para o Minho com dinheiro suficiente para comprar os seus cordões de ouro e reconstruir uma casinha no centro da aldeia, nos arredores de Vila Nova Cerveira. Cansada ou apenas ligeiramente fatigada da vida, aceitou trabalhar cá em casa. Desde então passei a ter uma vida disciplinada, cordata e agasalhada onde nunca faltaram a água mineral de Melgaço nem os medicamentos tomados a horas.
As minhas ocupações em casa são, por isso, reduzidas à biblioteca, ao jardim e ao depósito de velharias em que se transformou o escritório, onde se armazenam álbuns de família, recortes de jornais, correspondência dos bancos e declarações de impostos que o meu contabilista de Vila Praia de Âncora se encarrega com uma regularidade anual e displicente.
As minhas irmãs, que são expeditas em matéria de decoração doméstica, já me mencionaram inclusive o “feng shui” que me parece ser uma ciência exacta que determina a arrumação de vasos de bonsai. Elas insistem em que eu devo mudar a decoração da casa. Eu tremo só de pensar no assunto. Em primeiro lugar, a ideia da mudança de decoração; em segundo lugar, na sugestão de que devo ser eu a mudá-la. Elas raramente entram na biblioteca e por isso não sabem: as suas estantes ainda conservam hábitos clássicos de catalogação herdados do velho doutor Homem (meu pai), mantendo Disraeli ao pé de Yeats e Camilo afastado de Garrett (já em tempos expliquei não a resistência mas a aversão dos Homem por Garrett). Esta ideia de entrar pelas salas dentro e mudar a posição dos móveis, a luz dos candeeiros e os cortinados do escritório, não é nova e continua a não trazer novidade. Uma das ideias mais maçadoras da espécie é o apego à mudança. A “mudança” é um vício que se propagou com determinação, como um vírus sem remédio.
Tenho a ideia, certamente ainda improvável, de que a insistência na “mudança” corresponde ao sentimento mais conservador de hoje em dia. Não há ninguém que não queira uma “mudança”. Os políticos querem “mudança”, as minhas irmãs exigem-na com afecto, os eleitores são atraídos por ela como as multidões pela catástrofe. Não há político com ideias mais ou menos sensatas que, a certa altura, não acorde com o cérebro invadido por essa palavra ameaçadora: “mudança”. Ora, num país onde toda a gente quer mudança, seria bom pensarmos nas razões por que não se deve mudar. Mas não se espere isso de um pobre homem do Minho que encontrou há muitos anos um sistema de arrumação dos seus livros e dos vasos da varanda, e não vê motivos para entregar essa geometria, certamente caótica, à ciência da arrumação. Há coisas que, mudadas, ficam irremediavelmente perdidas.
Este apego à “mudança”, hoje em dia, devia preocupar os psicólogos. Uma das minhas sobrinhas confessou que não consegue passar uma semana sem consultar o seu; ela chama-lhe, antes, “analista”, e sabe do que fala: desde que encontrou a salvação, não quer mudança que lhe atrapalhe a vida ou lhe revele mais contrariedades. Eu sorrio, vagamente: as novas gerações vão ficando mais reaccionárias. Compreendo-as bem quando resisto à vontade de mudança decretada pelas minhas irmãs.
in Revista Notícias Sábado - 4 Fevereiro 2006
Eu sei. Ninguém de bom senso se atreve a mandar nesta casa. Na verdade, quem manda nesta casa é Dona Elaine, a governanta que há vinte anos cuida da despensa, da cozinha e das férias de Verão deste eremitério (de Julho a Setembro a casa é invadida por hordas de rapazes e raparigas de que lembro vagamente o nome, mas que vêm com os meus sobrinhos). Filha de emigrantes portugueses que fizeram a vida no Rio de Janeiro, Dona Elaine voltou viúva para o Minho com dinheiro suficiente para comprar os seus cordões de ouro e reconstruir uma casinha no centro da aldeia, nos arredores de Vila Nova Cerveira. Cansada ou apenas ligeiramente fatigada da vida, aceitou trabalhar cá em casa. Desde então passei a ter uma vida disciplinada, cordata e agasalhada onde nunca faltaram a água mineral de Melgaço nem os medicamentos tomados a horas.
As minhas ocupações em casa são, por isso, reduzidas à biblioteca, ao jardim e ao depósito de velharias em que se transformou o escritório, onde se armazenam álbuns de família, recortes de jornais, correspondência dos bancos e declarações de impostos que o meu contabilista de Vila Praia de Âncora se encarrega com uma regularidade anual e displicente.
As minhas irmãs, que são expeditas em matéria de decoração doméstica, já me mencionaram inclusive o “feng shui” que me parece ser uma ciência exacta que determina a arrumação de vasos de bonsai. Elas insistem em que eu devo mudar a decoração da casa. Eu tremo só de pensar no assunto. Em primeiro lugar, a ideia da mudança de decoração; em segundo lugar, na sugestão de que devo ser eu a mudá-la. Elas raramente entram na biblioteca e por isso não sabem: as suas estantes ainda conservam hábitos clássicos de catalogação herdados do velho doutor Homem (meu pai), mantendo Disraeli ao pé de Yeats e Camilo afastado de Garrett (já em tempos expliquei não a resistência mas a aversão dos Homem por Garrett). Esta ideia de entrar pelas salas dentro e mudar a posição dos móveis, a luz dos candeeiros e os cortinados do escritório, não é nova e continua a não trazer novidade. Uma das ideias mais maçadoras da espécie é o apego à mudança. A “mudança” é um vício que se propagou com determinação, como um vírus sem remédio.
Tenho a ideia, certamente ainda improvável, de que a insistência na “mudança” corresponde ao sentimento mais conservador de hoje em dia. Não há ninguém que não queira uma “mudança”. Os políticos querem “mudança”, as minhas irmãs exigem-na com afecto, os eleitores são atraídos por ela como as multidões pela catástrofe. Não há político com ideias mais ou menos sensatas que, a certa altura, não acorde com o cérebro invadido por essa palavra ameaçadora: “mudança”. Ora, num país onde toda a gente quer mudança, seria bom pensarmos nas razões por que não se deve mudar. Mas não se espere isso de um pobre homem do Minho que encontrou há muitos anos um sistema de arrumação dos seus livros e dos vasos da varanda, e não vê motivos para entregar essa geometria, certamente caótica, à ciência da arrumação. Há coisas que, mudadas, ficam irremediavelmente perdidas.
Este apego à “mudança”, hoje em dia, devia preocupar os psicólogos. Uma das minhas sobrinhas confessou que não consegue passar uma semana sem consultar o seu; ela chama-lhe, antes, “analista”, e sabe do que fala: desde que encontrou a salvação, não quer mudança que lhe atrapalhe a vida ou lhe revele mais contrariedades. Eu sorrio, vagamente: as novas gerações vão ficando mais reaccionárias. Compreendo-as bem quando resisto à vontade de mudança decretada pelas minhas irmãs.
in Revista Notícias Sábado - 4 Fevereiro 2006
<< Home