domingo, março 04, 2012

Sobre o clima e outras anomalias

Já contei aos leitores benevolentes que o Dr. Anthímio de Azevedo foi, nos anos derradeiros da vida do velho Doutor Homem, meu pai, uma espécie de autoridade doméstica cuja aparição televisiva era seguida com reverência e regularidade. Podia perder-se o telejornal, mas a informação meteorológica era uma espécie de celebração para crentes. Frases mágicas como “neblinas matinais a norte do Cabo Carvoeiro” ou “precipitação a norte do sistema Montejunto-Estrela” eram perseguidas como revelações sobre o estado da Pátria e o andamento das coisas da família, intrinsecamente associadas porque tinham a ver com a escolha da roupa para o dia seguinte, a preparação dos espíritos para as embirrações do cosmos e uma secretíssima aposta de todos nós acerca da fiabilidade das previsões meteorológicas.

Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, perpetuou esses hábitos e parece querer julgar que a imprevisibilidade dos elementos é gerida pelos meteorólogos mais do que pelo complexo sistema de altas e baixas pressões. Olhando pela janela da cozinha enquanto tomo o pequeno-almoço de torradas e café de cevada (além da medicação matinal), a antiga emigrante do Brasil tenta perceber se se aproximam nuvens que acalmem a seca de Inverno. Quando insiste que vem aí o fim do mundo, tento pacificar a sua veia catastrofista prometendo-lhe chuva durante o resto do mês, mas falta-me a autoridade do Dr. Anthímio de Azevedo. Resignado, lembro a mim próprio que tenho saudades da chuva como do tempo em que Março a interrompia com a floração dos hibiscos e com o vendaval de mimosas (Acacia dealbata) nas estradas em redor de Viana.

Entretanto, a Dra. Teresa, a médica de Venade (sobre as colinas de Caminha), mandou-me fotografias das suas magnólias em botão. Respondi-lhe que o assunto merecia versos mais do que a admiração cirúrgica do botânico; e que eu não estava à altura da missão. Sendo isto verdade, sinto-me como Dona Elaine perscrutando as nuvens sobre Moledo, aguardando as primeiras bátegas de chuva a cair em São Pedro de Arcos; aí, não há lugar para as belas magnólias de Venade, e a minha memória leva-me a uma espécie de paraíso onde o silêncio no alto das montanhas se perdeu já depois de todos estes anos. Os meus sobrinhos continuam a levar lá os seus filhos e as suas namoradas, em peregrinação sentimental e, creio, em nome do Tio Alberto, que considerava aquela paisagem uma dádiva dos céus. Ele sabia, não se sabe por que vias, que a meteorologia é uma entidade anómala que cresce no coração.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 Março 2012