As açucenas amarelas da Tia Henriqueta
A cozinha da Tia Henriqueta, como já contei uma vez aos leitores, era um emblema da arte gastronómica, uma espécie de reduto da cozinha familiar do velho Minho e de Vila Praia de Âncora, onde terminou os seus anos. Tinha um rosto vagamente melancólico e suave, uns olhos redondos que denunciavam um apetite burguês pela comida e pelos prazeres domésticos. A sua viuvez, demasiado jovem – aos trinta e quatro anos –, permitiu-lhe atravessar a idade madura com inteira liberdade, aproveitando o que de melhor tinha a vida antes de chegar a crise económica, o desvario das finanças e a malvadez do mundo. O seu arroz de pato continua hoje a ser um mistério; cada um dos meus irmãos (as minhas duas irmãs, ainda jovens, têm dedicado os últimos anos à prática de dietas cíclicas e creio que dolorosas) recorda cada grão e cada garfada. Além disso havia ainda o riso da Tia Henriqueta, sobrepondo-se à memória de uma família vagamente dedicada a viver no anonimato, visitando-se, emprestando livros das suas bibliotecas, venerando as fotografias dos antepassados e discutindo se o general Lemos podia – ou não – ter assinado os documentos de Evoramonte. Todos eram unânimes nesse particular: não devia ter assinado. Mas era um resto de heroísmo à distância, desalentado e birrento. Nas outras matérias não havia unanimidade – uns optavam pelo arroz de pato, outros pelo cabrito no forno de lenha, outros pelos rojões, e uma minoria esclarecida e hedonista pelos seus mexilhões passados em metade de água doce e metade de água do mar, temperados de azeite, salsa, alho e pimentos de vinagre.
A Tia Henriqueta morreu suavemente e sem pecados capitais, generosa, extinguindo-se depois de uma pneumonia. Estávamos na Primavera de 1967, e o funeral partiu para Ponte de Lima ao fim de uma manhã enevoada que terminaria numa tarde ensolarada, quente, misericordiosa. Murmurava-se que, depois de viúva, apenas alimentou duas paixões: uma delas era a sua cozinha, a outra nunca era citada em família por uma espécie de pudor benigno e envergonhado. Tratava-se de um certo pudor, respeitoso e romântico. A sua grande amizade por uma antiga companheira de juventude nunca mereceu qualquer comentário na família, que se recusava a escandalizar-se por tão pouco. O aroma cálido das açucenas amarelas e das magnólias de Vila Praia de Âncora ainda hoje transporta consigo essa recordação de uma mulher delicada e silenciosa. Tocava piano, mas muito mal. Cozinhava maravilhosamente. Parecia uma personagem de Dona Agustina, embevecida diante do mundo.
in Domingo - Correio da Manhã - 18 Março 2012
A Tia Henriqueta morreu suavemente e sem pecados capitais, generosa, extinguindo-se depois de uma pneumonia. Estávamos na Primavera de 1967, e o funeral partiu para Ponte de Lima ao fim de uma manhã enevoada que terminaria numa tarde ensolarada, quente, misericordiosa. Murmurava-se que, depois de viúva, apenas alimentou duas paixões: uma delas era a sua cozinha, a outra nunca era citada em família por uma espécie de pudor benigno e envergonhado. Tratava-se de um certo pudor, respeitoso e romântico. A sua grande amizade por uma antiga companheira de juventude nunca mereceu qualquer comentário na família, que se recusava a escandalizar-se por tão pouco. O aroma cálido das açucenas amarelas e das magnólias de Vila Praia de Âncora ainda hoje transporta consigo essa recordação de uma mulher delicada e silenciosa. Tocava piano, mas muito mal. Cozinhava maravilhosamente. Parecia uma personagem de Dona Agustina, embevecida diante do mundo.
in Domingo - Correio da Manhã - 18 Março 2012
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