A companhia geral dos telefones
Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, é do tempo em que o telefone era um luxo. Uma chamada para Viana ou para o Porto durava entre dois e três minutos e, quando lhe calhava ter de ligar para os familiares do Brasil, no Rio ou em Niterói, um minuto bastava para o essencial, rematando com um “não gastes mais dinheiro, adeus, adeus”. Escreviam-se cartas, treinando a ortografia e alguma sintaxe – e, para as notícias dramáticas ou, pelo contrário, festivas, havia os telegramas. A morfologia e sintaxe dos telegramas comovem-me até hoje, por terem dado origem a mensagens tão originais que se escapava o verdadeiro sentido da notícia. Já quanto à epistolografia, o único género literário experimentado pela família (sobretudo pelo meu avô, que se correspondia diariamente com proprietários das quintas do Douro, seus clientes de várias décadas), deu origem a monumentos biográficos e vale mais do que vários tratados de sociologia.
O velho Doutor Homem, meu pai, não assistiu ao advento do telemóvel. Usava com parcimónia o telefone e não creio que fosse por recear a factura mensal da companhia; tinha horror, isso sim, à campainha do aparelho, que considerava uma intromissão exagerada. À hora do jantar desligava o telefone; e defendia que depois das dez da noite era indecoroso estar a incomodar alguém ou sujeitar-se ao incómodo de receber chamadas. Parte da família considerava isto uma prova de misantropia ou de sobranceria, ignorando que se tratava, apenas, de defender o direito a uma certa indiferença, além da tranquilidade doméstica.
Durante o Verão, quando a casa de Moledo se assemelha a um quartel-general de uma campanha no Norte de África (ocupada por sobrinhos, por amigos dos sobrinhos e por sobrinhos-netos), verifico que as novas gerações não sucumbem ao excesso de comunicação. Ligados sem descanso ao outro lado do mundo, ao outro lado do Minho, ao outro lado do país ou apenas ao outro lado da praia, comunicam permanentemente e ignoram como era um mundo onde as pessoas se encontravam, chegavam a horas e conversavam sem ser através do telefone e sem ser constantemente. A minha sobrinha Maria Luísa desliga o telemóvel aos sábados, mas não resiste a – ao fim do dia – “ir ver as mensagens”, como se lhe pudesse ter escapado uma parte da vida depois de umas horas de recolhimento. Compreendo-a, no fundo: num mundo que não tem pausas, ela recusa-se a admitir que está ausente.
Dona Elaine, essa, troca mensagens com as amigas e não sai para a farmácia sem levar o telemóvel, não vá dar-se o caso de o Papa lhe ligar entretanto.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Março 2012
O velho Doutor Homem, meu pai, não assistiu ao advento do telemóvel. Usava com parcimónia o telefone e não creio que fosse por recear a factura mensal da companhia; tinha horror, isso sim, à campainha do aparelho, que considerava uma intromissão exagerada. À hora do jantar desligava o telefone; e defendia que depois das dez da noite era indecoroso estar a incomodar alguém ou sujeitar-se ao incómodo de receber chamadas. Parte da família considerava isto uma prova de misantropia ou de sobranceria, ignorando que se tratava, apenas, de defender o direito a uma certa indiferença, além da tranquilidade doméstica.
Durante o Verão, quando a casa de Moledo se assemelha a um quartel-general de uma campanha no Norte de África (ocupada por sobrinhos, por amigos dos sobrinhos e por sobrinhos-netos), verifico que as novas gerações não sucumbem ao excesso de comunicação. Ligados sem descanso ao outro lado do mundo, ao outro lado do Minho, ao outro lado do país ou apenas ao outro lado da praia, comunicam permanentemente e ignoram como era um mundo onde as pessoas se encontravam, chegavam a horas e conversavam sem ser através do telefone e sem ser constantemente. A minha sobrinha Maria Luísa desliga o telemóvel aos sábados, mas não resiste a – ao fim do dia – “ir ver as mensagens”, como se lhe pudesse ter escapado uma parte da vida depois de umas horas de recolhimento. Compreendo-a, no fundo: num mundo que não tem pausas, ela recusa-se a admitir que está ausente.
Dona Elaine, essa, troca mensagens com as amigas e não sai para a farmácia sem levar o telemóvel, não vá dar-se o caso de o Papa lhe ligar entretanto.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Março 2012
<< Home