A solidão não é o maior dos males
O “frio” entrou no vocabulário dos portugueses tal como a palavra “implementar” há uns anos. Ultimamente, tenho reparado que alguns políticos com formação jurídica – ou, sobretudo, sem ela – afirmam que determinado “princípio” não está “plasmado na lei”. O velho Doutor Homem, meu pai, nunca deve ter escrito os verbos “plasmar” nem “implementar”, mas, quanto ao frio, limitava-se a esperar por ele a partir de Outubro. Os portugueses hoje em dia não esperam – limitam-se a conferir o estado do tempo e a seguir os alertas amarelos que os previnem sobre a necessidade de usar um cachecol e um agasalho. Enquanto tomo o pequeno-almoço na mesa da cozinha, Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, olha melancolicamente pela janela e tenta descortinar, para lá da ramagem dos pinheiros e da vetusta araucária seminua, a vinda de umas nuvens que anunciem chuva. Observo os vasos de hibiscos, transplantados – sobrevivem mal ao frio, mas aguardarão pacientemente a hora de florir e de agradar os olhos de um velho que sobreviveu a vários Invernos e que não discute o Acordo Ortográfico pela simples razão de que os seus livros (armazenados sem ordem e desordenados segundo uma lógica que só eles conhecem) lhe traçaram uma língua e um destino.
A família visita Moledo aos domingos de final de manhã e prolonga a tarde entre conversas que afloram a meteorologia, as finanças, a televisão e outros males da Pátria. Somos maledicentes, evocamos o passado, preguiçamos numa varanda que assiste a estes rituais sem protestar. Ao partirem, para o Porto ou para Braga, ainda não cai o crepúsculo e logo reaparece aquela suavidade dos domingos que só os velhos pressentem: o ruído de uma motorizada que passa na estrada, adolescentes que regressam das dunas ou as visitam a essa hora, carros que se dirigem para o muro da praia, onde assistem ao milagre daquele quadro de Turner com a Ínsua recortada sobre a cor do mar. Quando prolongo a minha presença neste observatório, Dona Ester ameaça-me com uma pneumonia e lembra-me que há-de cair a neblina. Não cai. Não vem.
Num destes dias, Dona Celina, bibliotecária de Caminha, descobriu uma edição rara de ‘Onde Está a Felicidade?’, o livro de Camilo Castelo Branco. Notei, pelos seus olhos, que a pergunta fazia algum sentido. Deixei de a fazer há muito tempo, porque quase sou contemporâneo do bruxo de Seide, e compreendi que a solidão não é o maior dos males. Com a passagem do tempo, só o que não fizemos nos arrasta para o fundo.
in Domingo - Correio da Manhã - 19 Fevereiro 2012
A família visita Moledo aos domingos de final de manhã e prolonga a tarde entre conversas que afloram a meteorologia, as finanças, a televisão e outros males da Pátria. Somos maledicentes, evocamos o passado, preguiçamos numa varanda que assiste a estes rituais sem protestar. Ao partirem, para o Porto ou para Braga, ainda não cai o crepúsculo e logo reaparece aquela suavidade dos domingos que só os velhos pressentem: o ruído de uma motorizada que passa na estrada, adolescentes que regressam das dunas ou as visitam a essa hora, carros que se dirigem para o muro da praia, onde assistem ao milagre daquele quadro de Turner com a Ínsua recortada sobre a cor do mar. Quando prolongo a minha presença neste observatório, Dona Ester ameaça-me com uma pneumonia e lembra-me que há-de cair a neblina. Não cai. Não vem.
Num destes dias, Dona Celina, bibliotecária de Caminha, descobriu uma edição rara de ‘Onde Está a Felicidade?’, o livro de Camilo Castelo Branco. Notei, pelos seus olhos, que a pergunta fazia algum sentido. Deixei de a fazer há muito tempo, porque quase sou contemporâneo do bruxo de Seide, e compreendi que a solidão não é o maior dos males. Com a passagem do tempo, só o que não fizemos nos arrasta para o fundo.
in Domingo - Correio da Manhã - 19 Fevereiro 2012
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