domingo, janeiro 22, 2012

O ódio, o rame-rame e a necessidade do vento

Há certos períodos da história, por motivos certamente inexplicáveis, em que o ódio anda à solta. Existem, sobre isso, duas perspectivas: uma, muito moral e cheia de bondade, que supõe um queixume geral sobre como os tempos estão amargos e sobre a necessidade de “conciliação”. Assisti, ao longo da minha vida, a vários períodos de “conciliação”; o mais longo, quase perpétuo, foi imposto pelo dr. Salazar, que tinha a vantagem de contar com o exército e as finanças do seu lado – com essas duas legiões, a “conciliação” era um objectivo garantido. Hoje, o exército não conta e as finanças (salvo se se falar, como o faz a minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, “na finança”, um conjunto de cavalheiros hediondos que manuseia os destinos do país no conforto dos seus gabinetes) estão pobres.

A Tia Benedita temia que se cancelassem em Ponte de Lima os festejos em honra de Nossa Senhora das Dores. Ela acreditava que as romarias, a procissão, os cortejos, os foguetes e o despique entre as filarmónicas contribuíam para a “conciliação”. Depois disso, a vida voltava ao normal. Queria ela dizer, na sua sabedoria de Antigo Regime (anterior, portanto, a Manuel Fernandes Tomás), que se voltava “ao rame-rame” – que devia ser interrompido de tempos a tempos.

Hoje, estamos “no rame-rame”. Suponho não haver nenhum estudo sociológico sobre a matéria, mas acredito que os portugueses não só não apreciam grandemente “o rame-rame” como acreditam que, ao contrário de outros povos, não foram feitos para “o rame-rame”.

Sem ser doutorada em ciência política, também Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, sustenta que é preciso mais do que a realidade para alimentar os seus concidadãos. Ontem, ao pequeno-almoço, enquanto me servia do meu café de cevada, fonte de humildade e de hipertensão saudável, Dona Elaine sugeriu que estava um nadinha cansada de “más notícias sobre as finanças”. Lembrei-lhe que noutros países se ouviam as mesmas más notícias e que a prosperidade tanto se perdia num ano como se recuperava em décadas. Ela confirmou, e lembrou os anos de penúria e de verdadeira “austeridade”, quando se dividiam as sardinhas e não havia talhos nem televisão por cabo.

“O senhor doutor sabe de finanças, mas eu percebo do Minho. Fazer contas está muito bem, mas também é preciso um bocadinho de espavento”, lembrou a filha de emigrantes de Reboreda.

Eu concordei. Na minha cabeça, a palavra que ficou foi “vento” em vez de “espavento”, mas atribuo isso ao meu conservadorismo congénito.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Janeiro 2012