domingo, dezembro 11, 2011

O estado natural das coisas em Moledo

Sabe já o leitor benevolente que o destino não quis que eu seguisse e cumprisse “a ordem natural das cousas”, limitando-me, em vez de criar uma família, a pertencer à que me coube em sorte. O facto, em si mesmo, diz alguma coisa sobre o meu carácter e os meus defeitos mas acredito que contribui para morigerar a vaidade que tenho em algumas das minhas qualidades. A vaidade, aliás, é uma das características dos Homem, o que não esconde certa misantropia, desenvolvida sobretudo depois de parte dos nossos antepassados se terem recusado a passar a barreira do Antigo Regime, onde ficaram, entretidos com as suas coisas e mandando restaurar periodicamente os retratos mais antigos. Seja como for, esta mediocridade obrigou-me a poupar largas somas de energia que tenho aplicado nas tarefas de mártir da botânica e de leitor de curiosidades.

Dona Ester, minha mãe, que por várias vezes me salvou dos abismos da infelicidade, nunca insistiu em que eu perseguisse o ideal de um casamento feliz, uma família estável, uma descendência que prolongasse a genealogia. Os meus irmãos (somos cinco) encarregaram-se disso, providenciando uma geração de sobrinhos-netos de que me orgulho com frequência e à qual atribuo virtudes curativas para os meus males de solidão, falando-me de assuntos que continuo a ignorar distraidamente, como a literatura dos últimos anos (tirando Dona Agustina, que pertence a uma certa forma de eternidade), o rock (que continuo a confundir com o ‘twist’ e o ‘ié-ié’), a internet, a puericultura e o dr. Alberto João Jardim.

Desconhecendo os males da adolescência, período de que, a ter existido no meu caso, não guardo grandes saudades, não compreendo as suas “crises”. Os filhos de Maria Luísa apenas se aproximam perigosamente desse limbo, preparando vinganças; os de Ricardo atravessam-no com sobressaltos; Pedro, o arquitecto, não tem filhos, limitando-se a namorar com uma jovem bióloga holandesa que considera os portugueses objecto de estudo da paleontologia.

A vida adulta não corre melhor. Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, considera que não é apenas o país que está perdido, mas também os meus irmãos, que falam continuamente de economia e finanças como se não tivessem passado anos a falhar todas as previsões. Também aqui a “a ordem natural das cousas” teve os seus sobressaltos: as minhas irmãs lamentam-se, folheando revistas de frivolidades, porque parece que foram forçadas a aprender contabilidade. Eu apenas comento que a discrição é um bem a conservar.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Dezembro 2011