segunda-feira, novembro 08, 2010

As agruras do clima e o elogio da preguiça

O frio é um elemento de civilização, dizia o velho Doutor Homem, meu pai, que não conheceu as objecções contemporâneas à palavra “civilização”. A minha sobrinha Maria Luísa acha que o termo tem muito a ver com “a mania de os europeus se julgarem o centro do mundo”. Creio que isso se deve à existência de calor na Tailândia ou nas Caraíbas quando em Viana do Castelo ou em Colónia se pressente um inverno polar e rigoroso – e de nós valorizarmos mais a fina camada de geada nos pinhais dos Arcos de Valdevez do que as bagas de suor que esvoaçam em Singapura, nos sertões africanos ou à roda do Cairo. Acontece que o mundo do velho Doutor Homem, meu pai, tirado certas ocasiões de desacordo, se limitava à velhíssima Europa. Na família, além das recordações do Tio Henrique, o mais exímio e apaixonado dos instrumentistas de oboé de todo o Alto Minho – que sonhava com os grandes planaltos de África e suspirava pelas campanhas pelas savanas, picado pela malária ou atormentado pelo degredo –, só o meu tio Alberto, o bibliófilo de São Pedro de Arcos, podia dar-se ao luxo de viver fora deste mundo, ou seja, fora da Europa (ele namorava com uma princesa russa, como se regista nos álbuns de família). Mesmo assim, quando recebeu D. Camilo José Cela no seu refúgio das montanhas foi ovos com chouriço e sardinhas fritas que preparou ao escritor, para se vingar do desprezo a que D. Ramon Otero Pedrayo tinha sido sujeito. De modo que somos o que somos, e o nosso termómetro assinala variações conformes.

O frio, justamente, regressou às nossas províncias – por um dia ou dois, é certo, e ainda sem a inclemência do Grande Inverno que descerá em breve das serras. Ele serve para nos avisar de que estamos de passagem de um ciclo a outro. Mal vinha a aragem de Outono, o velho Doutor Homem, meu pai, começava a cismar e, por vezes, remoía acerca de como a eternidade não é de fiar. O velho causídico era um maroto, como sabia toda a família – sob a capa faustosa e melancólica do filósofo de fim de semana, estava ali um sátiro que detestava o romantismo de fim de estação, tanto como as frases demasiado longas e encavalitadas. O frio acomodava-o e favorecia-lhe a preguiça a que se permitia depois das grandes refeições ou antes delas; permitia-lhe gozar longas horas de leitura enquanto chovia e os elementos se indispunham. Era o seu grande momento de civilização. Sem o dizer, era, no fundo, um elogio da preguiça.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Novembro 2010