Acerca da riqueza e da vinda do Outono
O velho Doutor Homem, meu pai, protegia o nome dos seus clientes – empresários, como se diz hoje, que procuravam ajuda para os seus negócios no âmbito do então direito bancário. O meu avô, que administrava quintas e propriedades, mal mencionava os nomes dos seus vários patrões, uma lista generosa de ingleses e de portugueses que produziam vinhos no Douro. Havia, digamos, um certo ‘sentido de Estado’ quando se falava dos mistérios da propriedade e dos caminhos que levavam às contas bancárias. Havia um certo pudor na exibição da fortuna e dos seus sinais. Hoje, esses sinais são ‘exteriores’ e o pudor desapareceu grandemente. Proprietários ou ‘homens de negócios’, ‘cavalheiros da indústria’ (classe extinta há muito) ou ‘investidores’, o que a maior parte deles queria era recato. Compreendia-se: o catolicismo educara o país para ser remediado e culpado; o regime do dr. Salazar não gostava de ostentação. E, na verdade, nem toda a riqueza era pura como o suor que caía do rosto mortificado pelo trabalho, pela perseverança e pelo sacrifício.
Muitos desses ricos do meu tempo, os velhos ricos de outrora, pagaram escolas e estradas, chafarizes e hospitais temporários, bibliotecas e bolsas de estudo. A alguns assustava o complexo de culpa judaico-cristão, uma expressão que a minha sobrinha Maria Luísa popularizou em casa, estendendo-o para justificar tanto a abstinência como o excesso; a outros, assaltava-os o passado de penúria que pretendiam redimir; a outros, suspeito que se tratava de vaidade e pura vontade de mostrar o dinheiro entretanto ganho.
Não sendo “pecado fatal”, a fortuna de antigamente era mais sólida e mais discreta. As camisolas de lã dos nossos vizinhos da velha Foz portuense, que tinham fiações em Famalicão e Lanhoso, eram tricotadas à mão por umas tias de Gondarém, e duravam longos invernos sem serem substituídas. Os ricos de hoje mudam de guarda-roupa várias vezes ao dia e não sabem que o vestuário de uma estação se há-de guardar para a do próximo ano, e que não se pode trocar de carro de dois em dois anos.
O demónio da velhice tocou-me e veio acompanhado pelo da parcimónia, que é reaccionário e cheio de prelecções sobre o aforro e a temperança. Acontece pelo Outono, segundo parece. Ricos e pobres, não somos todos iguais diante de Outubro. O mar de Moledo, nesta época, convida-me à melancolia mas não à tristeza. Fui buscar a gabardina ao armário; uso-a há doze anos, Outono sobre Outono, esperando a bênção da chuva e do calendário.
in Domingo - Correio da Manhã - 17 Outubro 2010
Muitos desses ricos do meu tempo, os velhos ricos de outrora, pagaram escolas e estradas, chafarizes e hospitais temporários, bibliotecas e bolsas de estudo. A alguns assustava o complexo de culpa judaico-cristão, uma expressão que a minha sobrinha Maria Luísa popularizou em casa, estendendo-o para justificar tanto a abstinência como o excesso; a outros, assaltava-os o passado de penúria que pretendiam redimir; a outros, suspeito que se tratava de vaidade e pura vontade de mostrar o dinheiro entretanto ganho.
Não sendo “pecado fatal”, a fortuna de antigamente era mais sólida e mais discreta. As camisolas de lã dos nossos vizinhos da velha Foz portuense, que tinham fiações em Famalicão e Lanhoso, eram tricotadas à mão por umas tias de Gondarém, e duravam longos invernos sem serem substituídas. Os ricos de hoje mudam de guarda-roupa várias vezes ao dia e não sabem que o vestuário de uma estação se há-de guardar para a do próximo ano, e que não se pode trocar de carro de dois em dois anos.
O demónio da velhice tocou-me e veio acompanhado pelo da parcimónia, que é reaccionário e cheio de prelecções sobre o aforro e a temperança. Acontece pelo Outono, segundo parece. Ricos e pobres, não somos todos iguais diante de Outubro. O mar de Moledo, nesta época, convida-me à melancolia mas não à tristeza. Fui buscar a gabardina ao armário; uso-a há doze anos, Outono sobre Outono, esperando a bênção da chuva e do calendário.
in Domingo - Correio da Manhã - 17 Outubro 2010
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