domingo, outubro 24, 2010

O mal de amor e a chegada do Inverno

A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga cuidando das casas dos seus clientes ricos, cuida que há paixões demolidoras, capazes de figurar na galeria da eternidade. Como nos separam cinquenta anos, limito-me a concordar como se o tema me ultrapassasse e fosse uma espécie de metafísica inacessível a um velho reformado dos assuntos de direito bancário. À falta de uma paixão sucederia a existência de outra, nem sempre a ideal; e da falência de outra haveria de passar-se à busca de uma nova, que garantisse que o mundo continua a ser, desde o tempo em que existiam os quatro rios do paraíso, um terreno disponível para florir quando nos dá jeito. Que eu me lembre, só Camilo Castelo Branco, que não amava, verdadeiramente, soube lançar maior descrédito do que eu sobre o assunto. Isto, em que o leitor pode vislumbrar a vaidade de um velho, é apenas o reconhecimento de uma deficiência orgânica. A ironia cega, a paixão enlouquece, o amor perdura, o cinismo magoa, o desencanto apaga-nos: é este o resumo da história da humanidade que procura o amor verdadeiro.

Tentei explicar a Maria Luísa que, de verdadeiro, só há ordens para pagar impostos ou a poeira velha que paira sobre os anos avançados; o amor verdadeiro passou quando o recordamos mais tarde, como uma floração tardia. No tempo em que podia gastar a minha juventude sofria-se de amor, respondiam-se cartas, faziam-se planos, amantes fugiam pelas veredas da noite, famílias conservadoras mas comovidas abrigavam casais em fuga, padres de província desafiavam a moral – e não se procurava o amor verdadeiro. Ele viria.

Por exemplo, eu esperei pela sua chegada durante anos e anos depois de ter fenecido a memória de um grande desgosto. Veio um, veio outro, veio outro ainda, e ainda um outro – nenhum deles apagou a doçura daquele sofrimento antigo e amargo, vivido sob a tepidez febril de uma temporada no Rio de Janeiro, em contacto com a leveza inacessível da vida e a incerteza da passagem do tempo. A felicidade era isso – e a sua contemplação.

Agora, diante do Inverno, recordo que ele começa verdadeiramente quando Dona Elaine autoriza. Até lá, a palavra não passa de uma metáfora com uso razoavelmente literário – porque não tem, a acompanhá-lo, o tradicional desfile de mudanças que o calendário exige e aguarda com curiosidade sobre a nossa vida. Nestas circunstâncias sou apenas um velho botânico comovido com os bolbos que hão-de florir daqui a seis meses. Nessa altura virá. Virá o amor, explico a Maria Luísa.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Outubro 2010