Uma barreira contra a vulgaridade
A República não comove a família. Parte dela ainda vive antes do Constitucionalismo e considera o general Azevedo e Lemos, que assinou a Concessão de Évora Monte em nome do Senhor D. Miguel, um herói no condicional – mas é por birra. Na realidade, não vivem nesse tempo; limitam-se a viver em silêncio. São de outro tempo qualquer; guardam as suas memórias e as suas honras, os seus retratos, os cálices de Porto, as suas bibliotecas poeirentas, as colchas com as cores legitimistas, como se tudo isso fossem elementos que transportam para a posteridade o travo da derrota. A derrota ilumina o carácter e educa o espírito para os bons e os maus momentos. É uma aprendizagem difícil, a desse silêncio de quase dois séculos. Por isso, a República não chega a comover a família.
Nos Arcos de Valdevez, o regime do dr. Afonso Costa só chegou uma temporada depois. A mesma coisa em S. Pedro de Arcos. Ponte de Lima, ao pé disto, era uma jóia do cosmopolitismo. Amanuenses, pirómanos, comerciantes do centro de Braga, jornalistas do Porto, frequentadores dos Fenianos, militares de carreira, radicais de toda a espécie – a República não comoveu os que tinham previsto os passos seguintes.
O meu avô, administrador de quintas do Douro, amigo dos ingleses, também previu a existência de uma figura como o dr. Salazar; o velho Doutor Homem, meu pai, abominava-o; a Tia Benedita nunca guardava lugar para o escândalo, porque a vida não era feita de surpresas, mas de repetição e de derrotas – com a República, até o dr. Salazar podia ser ditador. O seu fatalismo não a amargurou; pelo contrário, era o bálsamo que oleava o pêndulo das coisas e a tornou imune às catástrofes. Pessimista sem ter lido os filósofos, a Tia Benedita é a grande figura de um hipotético “romance de família”, precisamente porque não é heroína, não a cerca a glória nem a vaidade. Apenas a ideia de que só podia ser pior.
Ao contrário da República, que vinha acompanhada de adjectivos, de pontos de exclamação e de loas ao futuro, a Tia Benedita só temia que o dr. Afonso Costa viesse roubar as igrejas do Minho. Dizia-o por despeito e por obsessão. Na verdade, ela também detestava o Constitucionalismo e a monarquia moderna, cheia de funcionários públicos, de vates iletrados e de românticos nas secretarias e repartições, pálidos, tuberculosos e a cheirar a colónia espanhola. Detestava a burguesia que fazia as revoluções e que as manobrava por impulso erótico, como um vício que precisavam de alimentar. Todos os anos a lembro, no 5 de Outubro, como uma barreira contra a vulgaridade.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Outubro 2010
Nos Arcos de Valdevez, o regime do dr. Afonso Costa só chegou uma temporada depois. A mesma coisa em S. Pedro de Arcos. Ponte de Lima, ao pé disto, era uma jóia do cosmopolitismo. Amanuenses, pirómanos, comerciantes do centro de Braga, jornalistas do Porto, frequentadores dos Fenianos, militares de carreira, radicais de toda a espécie – a República não comoveu os que tinham previsto os passos seguintes.
O meu avô, administrador de quintas do Douro, amigo dos ingleses, também previu a existência de uma figura como o dr. Salazar; o velho Doutor Homem, meu pai, abominava-o; a Tia Benedita nunca guardava lugar para o escândalo, porque a vida não era feita de surpresas, mas de repetição e de derrotas – com a República, até o dr. Salazar podia ser ditador. O seu fatalismo não a amargurou; pelo contrário, era o bálsamo que oleava o pêndulo das coisas e a tornou imune às catástrofes. Pessimista sem ter lido os filósofos, a Tia Benedita é a grande figura de um hipotético “romance de família”, precisamente porque não é heroína, não a cerca a glória nem a vaidade. Apenas a ideia de que só podia ser pior.
Ao contrário da República, que vinha acompanhada de adjectivos, de pontos de exclamação e de loas ao futuro, a Tia Benedita só temia que o dr. Afonso Costa viesse roubar as igrejas do Minho. Dizia-o por despeito e por obsessão. Na verdade, ela também detestava o Constitucionalismo e a monarquia moderna, cheia de funcionários públicos, de vates iletrados e de românticos nas secretarias e repartições, pálidos, tuberculosos e a cheirar a colónia espanhola. Detestava a burguesia que fazia as revoluções e que as manobrava por impulso erótico, como um vício que precisavam de alimentar. Todos os anos a lembro, no 5 de Outubro, como uma barreira contra a vulgaridade.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Outubro 2010
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