A vida privada e as coisas escondidas
A vida privada é uma invenção recente, tal como a tintura de iodo. Antes da tintura de iodo existia o mercurocromo com solução a 5% (e, em algumas farmácias, a 10) além do pó de sulfamidas, de que ainda se guarda um minúsculo frasco num armário de medicamentos, creio que por distracção – e porque o acaso e a distracção andam juntos para provar que a vida não muda de um dia para o outro. A administração de gotas de mercurocromo, essa solução infalível para todos os ferimentos do Alto Minho, obedecia a uma tradição estival na nossa família – o Verão estava cheio de displicência, de arranhões e de feridas nos joelhos.
Mas a criação da “vida privada”, essa, é ainda mais recente do que a da tintura de iodo. Antigamente, não existia, pura e simplesmente. Havia coisas públicas e havia “coisas escondidas”. Se alguma coisa pertencia à esfera do que viria a designar-se por “vida privada”, ficava circunscrita, antes disso, ao universo do que se escondia. Eram “coisas escondidas”. O espírito actual do mundo, no entanto, descrente das virtudes da civilização “judaico-cristã” (a expressão, ouvi-a pela primeira vez à minha sobrinha Maria Luísa a propósito da sua deambulação contra os tabus), acha que tem de haver “transparência”. Pois se há transparência deixou de haver “coisas escondidas”. Ora, eu tenho uma admiração secreta (nem podia deixar de sê-lo) pelas “coisas escondidas”, e a ideia de transparência lembra-me a minha imagem, ao espelho, vestido de roupa interior e pijama, só que exposta ao público. O interesse que o público tem, ou não, pelos meus pijamas, é coisa que naturalmente me transcende, embora eu prefira que eles sejam apenas conhecidos dentro de casa.
Com o fim das “coisas escondidas” – o sexo, as economias, os hábitos pessoais de higiene, as conversas de maledicência à mesa de família – nasceu esse círculo desfocado a que se convencionou chamar “vida privada”. A “vida privada” está ao alcance do olhar do público; simplesmente, o público pode, ou não, conforme lhe for mais conveniente, estar ao corrente.
Quando existiam cavalheiros, existiam “coisas escondidas”. Quando se convencionou que o cavalheirismo era uma excrescência e uma inutilidade que apenas trazia prejuízos num mundo burguês e comandado pela “transparência” – as “coisas escondidas” passaram a designar-se como “formas de hipocrisia”, tal como o fato de banho completo, o pudor e a literatura para todas as idades. Com isso, confesso, desapareceu uma das minhas razões de viver. A minha sobrinha acredita que sou um poço de perversidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Fevereiro 2010
Mas a criação da “vida privada”, essa, é ainda mais recente do que a da tintura de iodo. Antigamente, não existia, pura e simplesmente. Havia coisas públicas e havia “coisas escondidas”. Se alguma coisa pertencia à esfera do que viria a designar-se por “vida privada”, ficava circunscrita, antes disso, ao universo do que se escondia. Eram “coisas escondidas”. O espírito actual do mundo, no entanto, descrente das virtudes da civilização “judaico-cristã” (a expressão, ouvi-a pela primeira vez à minha sobrinha Maria Luísa a propósito da sua deambulação contra os tabus), acha que tem de haver “transparência”. Pois se há transparência deixou de haver “coisas escondidas”. Ora, eu tenho uma admiração secreta (nem podia deixar de sê-lo) pelas “coisas escondidas”, e a ideia de transparência lembra-me a minha imagem, ao espelho, vestido de roupa interior e pijama, só que exposta ao público. O interesse que o público tem, ou não, pelos meus pijamas, é coisa que naturalmente me transcende, embora eu prefira que eles sejam apenas conhecidos dentro de casa.
Com o fim das “coisas escondidas” – o sexo, as economias, os hábitos pessoais de higiene, as conversas de maledicência à mesa de família – nasceu esse círculo desfocado a que se convencionou chamar “vida privada”. A “vida privada” está ao alcance do olhar do público; simplesmente, o público pode, ou não, conforme lhe for mais conveniente, estar ao corrente.
Quando existiam cavalheiros, existiam “coisas escondidas”. Quando se convencionou que o cavalheirismo era uma excrescência e uma inutilidade que apenas trazia prejuízos num mundo burguês e comandado pela “transparência” – as “coisas escondidas” passaram a designar-se como “formas de hipocrisia”, tal como o fato de banho completo, o pudor e a literatura para todas as idades. Com isso, confesso, desapareceu uma das minhas razões de viver. A minha sobrinha acredita que sou um poço de perversidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Fevereiro 2010
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