domingo, fevereiro 07, 2010

Duas rendodilhas sobre a pátria, insensível

O velho Doutor Homem, meu pai, não conheceu a democracia (sobrevivendo ao 25 de Abril, via na velha Inglaterra um modelo de decência) mas achava que o país tinha uma queda insuspeita para a lamechice. Ele atribuía isso à falta de carácter e ao gosto pela literatura romântica, muito constitucional e setembrista, alimentada por vates que gostariam de pôr em verso o Diário do Governo – e, em simultâneo, de transcrever para prosa didáctica os lamentáveis versos patrióticos de D. Pedro, modelo que ainda hoje se segue nos jogos florais das nossas províncias. A cada um, juntava, segundo as suas responsabilidades; à Pátria, conforme os seus defeitos.

A minha sobrinha Maria Luísa acha isto um arrazoado conservador e pouco digno de um velho que ainda lê romances ingleses. Esta semana veio indignada com “qualquer coisa” cujas culpas essenciais atribui ao governo. Limitei-me a confirmar, acenando, tanto mais que era necessário cuidar da terra para os hibiscos que me foram prometidos por um botânico de Vila Praia de Âncora, cobrindo-a de nova turfa e falando-lhe em surdina para que se não destempere. Ela achou “indecente” a minha “indiferença”, característica muito próxima da misantropia, se o não fosse da tolerância com que devemos aceitar os dislates do nosso tempo. Limitei-me a confirmar que vivemos em democracia e que o povo tinha votado – o que, em linguagem do Minho de antanho, também quer dizer “lá as fizeram, lá se arranjem”.

O meu tempo já não se perde em matérias tão superiores como a ciência política ou tão especiosas como certas minudências de história da Pátria. Limito-me a considerar, vagamente, que não compreendo a surpresa – como se gente medíocre e ressentida só pudesse produzir mediocridade, ressentimento e tiranias. De todas as coisas que os Homem conservaram nos últimos dois séculos, titubeando entre revoluções e a modorra que o dr. Salazar inventou, uma se distingue: o conhecimento do mundo mostra que o género humano aprecia as tiranias estabelecidas em nome do progresso. O único problema é que o género humano não progrediu grandemente.

P.S. – O Dr. Henrique Barreto Nunes reformou-se da Biblioteca Pública de Braga, o que é uma perda substancial, não para a Biblioteca, mas para os seus livros (que o conheciam bem) e para leitores aplicados e com gosto. Durante décadas, ele iluminou com sabedoria e sensatez aquelas estantes. Convidá-lo para um almoço de Sábado neste eremitério de Moledo é uma obrigação a que não faltarei.

in Domingo - Correio da Manhã - 7 Fevereiro 2010