O regicídio, o heroísmo e a geração desiludida
A Tia Benedita foi contemporânea do regicídio e soube da notícia no próprio dia, ao crepúsculo gelado de Ponte de Lima. O seu pai, nosso avô Álvaro Jorge, era uma espécie de cartista da “geração desiludida”, convertido ao regime por um conjunto compreensível de inevitabilidades – a principal das quais tinha a ver com o facto de não ser possível regressar a 1800, e, não podendo fazê-lo, era preferível viver depois de 1860 do que na década de trinta do século XIX, em guerra civil permanente.
O leitor supõe, depois de ter lido dois ou três manuais de História Pátria, que a República tem, a coroá-la (imagine-se), as grinaldas do heroísmo e do progresso. A isto nos habituou o tempo, divulgando essa imagem da felicidade perpétua dos comerciantes da Baixa Pombalina e dos caixeiros da Rua Fernandes Tomás, rodeados de bustos seminus da República e de réplicas do avião em que Gago Coutinho e Sacadura Cabral rumaram ao Atlântico Sul. Esse misto de bonomia, acasos felizes e economia triunfante, porém, nunca existiu. Passados quarenta e, mesmo, cinquenta anos, a Tia Benedita continuava a acreditar que o dr. Afonso Costa viria pelo Minho fora incendiar seminários e roubar o tesouro de Sta. Marinha da Oliveira. Em vão o velho Doutor Homem, meu pai, lhe lembrava que o demagogo morrera entretanto; seja por desconfiar da informação, seja por acreditar na vida eterna, a senhora não desarmava, e tornou-se muito mais reaccionária do que – na realidade – era ou podia ser.
Este espectáculo burlesco de miguelistas fora de tempo, de cartistas vivendo os dramas da apostasia e de ‘liberais’ durante o Estado Novo, acompanhou sempre as minhas memórias da família. Parte da Pátria, no entanto, não compreendeu que não pode voltar atrás – nem a 1800 nem a 1908 – e entretém-se a louvar o regicídio, que agora se assinala como um prelúdio da República.
Nesta altura do ano, a minha sobrinha Maria Luísa transporta-me, no meio do frio, entre a geada e a neblina, a São Miguel de Ceide e à casa do velho bruxo da nossa literatura. Também ela faz parte de uma “geração desiludida”. Educada no respeito por todas as revoluções, foi compreendendo – ao longo dos últimos anos – que elas não devoram apenas os seus filhos, como o tempo. Devoram também a história dos seus heróis, até que as suas páginas revelem as indignidades e a cobiça do costume, além da sombra de maldade que atravessa as melhores ideias. Camilo, nas penumbras de Ceide, ainda ri dos heróis de 1830.
in Domingo - Correio da Manhã - 31 Janeiro 2010
O leitor supõe, depois de ter lido dois ou três manuais de História Pátria, que a República tem, a coroá-la (imagine-se), as grinaldas do heroísmo e do progresso. A isto nos habituou o tempo, divulgando essa imagem da felicidade perpétua dos comerciantes da Baixa Pombalina e dos caixeiros da Rua Fernandes Tomás, rodeados de bustos seminus da República e de réplicas do avião em que Gago Coutinho e Sacadura Cabral rumaram ao Atlântico Sul. Esse misto de bonomia, acasos felizes e economia triunfante, porém, nunca existiu. Passados quarenta e, mesmo, cinquenta anos, a Tia Benedita continuava a acreditar que o dr. Afonso Costa viria pelo Minho fora incendiar seminários e roubar o tesouro de Sta. Marinha da Oliveira. Em vão o velho Doutor Homem, meu pai, lhe lembrava que o demagogo morrera entretanto; seja por desconfiar da informação, seja por acreditar na vida eterna, a senhora não desarmava, e tornou-se muito mais reaccionária do que – na realidade – era ou podia ser.
Este espectáculo burlesco de miguelistas fora de tempo, de cartistas vivendo os dramas da apostasia e de ‘liberais’ durante o Estado Novo, acompanhou sempre as minhas memórias da família. Parte da Pátria, no entanto, não compreendeu que não pode voltar atrás – nem a 1800 nem a 1908 – e entretém-se a louvar o regicídio, que agora se assinala como um prelúdio da República.
Nesta altura do ano, a minha sobrinha Maria Luísa transporta-me, no meio do frio, entre a geada e a neblina, a São Miguel de Ceide e à casa do velho bruxo da nossa literatura. Também ela faz parte de uma “geração desiludida”. Educada no respeito por todas as revoluções, foi compreendendo – ao longo dos últimos anos – que elas não devoram apenas os seus filhos, como o tempo. Devoram também a história dos seus heróis, até que as suas páginas revelem as indignidades e a cobiça do costume, além da sombra de maldade que atravessa as melhores ideias. Camilo, nas penumbras de Ceide, ainda ri dos heróis de 1830.
in Domingo - Correio da Manhã - 31 Janeiro 2010
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